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Alexus – A Pedra de Céus e a Esfera da Luz

Copyright © 2022, Douglas Roehrs

Coordenação editorial: Roberto Schmitt-Prym
Projeto gráfico: e-design
Revisão: Vitor Necchi e Nina Spim
Capa: Gabriel Renner

A criação de Phanticéus


Em um planeta distante chamado Glórius, na galáxia de Cintor, nasceu o mago celestial Céus. Filho de Servor e Atena, comandantes daquele mundo de seres imortais, desde criança despertou a curiosidade de quem convivia com ele. Os dons de voar e manipular os elementos naturais, características da espécie, foram dominados ainda na adolescência.
Já ultrapassava os dois metros, altura média entre os seus, muitas décadas antes da maturidade. Fisicamente assemelhava-se a todos os outros: ombros largos, pele negra feito a mais bela das noites, cabelos castanhos encaracolados e grandes olhos de cor cinza. No entanto, havia algo inquietante nele. Quando se exaltava, a íris parecia prestes a pegar fogo. E não foram poucas as vezes que perdera a paciência.
Seus pais sabiam que ele era um dos grandes celestiais – seres que conseguem criar elementos a partir do nada. Queriam que o filho escolhesse algum companheiro para governar Glórius, mas esse não era o desejo de Céus.
Apesar de ser raro, ele não foi o único de sua geração a nascer com poderes extraordinários. Deus, seu primo de terceiro grau, também herdara habilidades incomuns. Todos os julgavam os novos soberanos, mas eles queriam muito mais do que isso. Almejavam os seus próprios mundos.
Decididos a partir, treinavam juntos para aperfeiçoar suas técnicas. Por mais que tivessem capacidade superior, era necessário empenho diário para aflorar e elevar todos os poderes.
Com o contato frequente, algo especial nasceu: o amor de Deus pelo seu primo. A espécie dos celestiais é feita de um único sexo, sendo que qualquer união é frutífera.
Mesmo que sentisse afeto pelo companheiro, Céus sabia que os sonhos dos dois eram demasiadamente grandes e não cabiam um no outro. Preferiu se unir com Clépar, que estava disposto a acompanhá-lo onde quer que ele fosse. A decisão feriu Deus, que não quis outro mago ao seu lado.
O dia da partida foi de muita confusão. Servor e Atena choraram, lamentaram e suplicaram para que o filho ficasse. De nada adiantou. Sob todos os protestos possíveis, Céus, seu companheiro e Deus iniciaram a aventura pelo universo.
A primeira parada foi na longínqua galáxia chamada Via Láctea. Deus olhou para aquela grande bola pegando fogo e para os poucos planetas que giravam ao seu redor. Decidiu que moldaria ali seu mundo. Fechou os olhos e fez surgir uma massa de rocha, lava e terra. Soprou com força e o objeto começou a girar em volta do próprio eixo.
O próximo passo foi ter uma atmosfera ideal. Após criada, deu forma ao grande continente, ao oceano, aos rios, às plantas, aos animais. Céus observava atento, pois preparava-se para quando fosse a sua vez.
Após ter criado os seres de raciocínio inferior, Deus fez nascer os humanos, seres de maior desenvolvimento intelectual, porém menores e de poucos poderes, se comparados com os celestiais.
— O amor me foi negado por ser fácil. Quando não se morre de velhice, tudo pode ser deixado para depois. Quando qualquer um serve, escolhemos qualquer um — balbuciou Deus para si mesmo, dando vazão ao seu ressentimento. — No planeta Gaia, nada será para sempre. Nem toda relação dará frutos.
Da amargura nasceu o homem e a mulher. Com o coração doído, lhes presenteou com uma morte que irremediavelmente viria. Para homenagear os avós, chamou o primeiro casal de Zeus e Olimpo. Logo depois, espalhou outros pares pelo mundo para garantir a perpetuação da espécie.
Passada a fase inicial, Céus e Clépar partiram. Vagaram por bom tempo até chegarem à galáxia de Martírius.
— Será aqui — gritou Céus, olhando para um imenso vazio prestes a ser preenchido.
Montou a estrutura inicial e a atmosfera. Jogou duas luas muito próximas ao planeta e um sol gigante e resplandecente lá longe. Bocejou sem querer e a bola de pedregulhos e barro começou a girar em torno do astro maior, acompanhada dos seus satélites naturais. Fez o oceano Phantitry, gigantesca porção de água doce a cobrir o mundo. Criou o continente, uma enorme faixa de terra com rios, florestas, montanhas. Despejou um sem número de seres de raciocínio inferior, todos de sexo único, e deteve-se nas espécies mais inteligentes.
Gostou tanto dessa etapa que resolveu modelar várias: humanos, com cerca de 1,70 m, pele amendoada e cabelos e olhos dum castanho bem claro; anões, com 1,20 m, pele clara, cabelos negros e olhos azuis; elfos, com 1,90 m, pele muito branca, cabelos loiros, orelhas pontiagudas e olhos tão verdes quanto a mata; gigantes, com 3 m, pele cor de sangue, carecas e olhos dourados; e nubous, com 1,60 m, corpo coberto por escamas azuladas, cabelos castanhos volumosos e olhos dum verde opaco.
Por curiosidade, Céus repartiu os seres em dois grupos. Elfos, anões e gigantes, assim como os celestiais, nasceram com sexo único – ou seja, qualquer um reúne os atributos para dar ou receber a semente de uma nova vida. Humanos e nubous, por sua vez, foram divididos entre dois sexos.
Concluído isso, espalhou-os pelo planeta Phanticéus. Anões, nubous e humanos foram postos no continente. Fez surgir uma ilha para os elfos, Maskar Kaya. Para os grandalhões, criou a Ilha dos Gigantes. Emergiu a ilha de Nublin, mas optou por deixá-la desabitada, ao menos por estes seres, e a Ilha Celeste, sua moradia e de Clépar.
Como era difícil comandar tudo cozinho, os celestiais empenharam-se em ter filhos. Nasceram Ódize, Cillion, Áques, Myvi, Louvres, Morlo, Morgana e Raya, seres poderosos.
Céus deu uma função para cada um coordenar e chamou-os de deuses, em homenagem ao primo. Ódize, o primogênito, ficou responsável pela tarefa mais difícil: cuidar da alma de quem morre. O deus dos mortos ganhou uma ilha para isso, Morte. Cillion ficou com tarefa bem mais agradável, pois tornou-se deus do amor. Áques, dos mares e rios. Myvi, dos sonhos. Louvres, das chuvas. Morlo, de temperamento mais explosivo que os irmãos, da guerra. Morgana, dos animais. Raya, das plantas. Clépar ganhou um título especial: deus da fertilidade. Por fim, fez surgir a Ilha das Divindades, onde todos os filhos, exceto Ódize, foram morar.
Para deixar a passagem do tempo menos confusa, formulou o calendário phanticeusiano. Nele, o ano tem quatrocentos dias, divididos em oito meses, todos com cinquenta dias. Cada dia tem vinte e quatro horas, cada hora, sessenta minutos, e cada minuto, sessenta segundos.
Como a distância de Phanticéus para o sol varia no decorrer do ano, dando ao mundo épocas de diferente temperatura média, nomeou quatro distintas estações. Os dois primeiros meses, Apocalíptico e Parca, com temperaturas mais baixas, passaram a ser os de inverno. Lírius e Citrus, quando as flores nascem com mais vigor, os de primavera. Cosmos e Natrivo, com temperaturas mais amenas, os de verão. Terminando o ano, Cléparos e Mares, época na qual as folhas começam a cair, tornaram-se os de outono.
Muitos anos após a criação, surgiram os subdeuses do amor – Criu, Piper, Tiron, Marte, Vida e Cilaia. O nascimento deles apenas aconteceu após Cillion, deus do amor, relacionar-se com um humano e dar à luz dois filhos, o primeiro casal da raça de magos phanticeusianos.
Além disso, houve o nascimento de outra raça, os índicas. Por mais que parecesse impossível, uma dupla de gigantes conseguiu fugir do submundo e retomar seus corpos. Ódize achou-os escondidos no continente e os modificou, deixando-os menores, intelectualmente afetados e com uma aparência nada boa. Mesmo assim, eles sobreviveram e tiveram muitos filhos, que perpetuaram a linhagem.
Mas não apenas de criações o mundo é movido. Também houve guerras e a extinção dos nubous. Eles queriam o poder acima de tudo e morreram após causarem muita dor.

Guerra Primordial


Ódize sempre sentiu-se aborrecido em apenas cumprir as tarefas para as quais fora designado. À procura de formas de se distrair, criou, no ano 400, o Livro de Magias – uma coleção de aprendizados malignos.
O deus dos mortos pôs a obra no topo da cratera do maior vulcão da Ilha Morte e, esperando um confronto entre os seres, distribuiu pergaminhos para todos os reinos phanticeusianos avisando da existência do exemplar. Para sua infelicidade, praticamente todas as espécies o ignoraram, exceto uma, a nubou, que sempre fora gananciosa. Vislumbrando a oportunidade de ampliar seu poder, os nubous mandaram uma comitiva com os melhores guerreiros para que achassem o tão cobiçado livro.
Os escolhidos deixaram o reino de Mávaros, navegaram pelo oceano e desembarcaram na ilha sombria. Sofreram as mais diversas provações, sendo que apenas dois retornaram. Apesar das perdas, houve uma grande festa, pois os sobreviventes trouxeram consigo o que procuravam.
Os nubous estudaram as técnicas e aperfeiçoaram-nas durante séculos. Dedicaram boa parte do tempo treinando para se tornarem os melhores, mais temíveis, superiores até mesmo aos elfos, espécie mais habilidosa à época.
Começaram sua política de domínio mundial ao declararem guerra aos reinos vizinhos de Clanger, dos humanos, e Mésopos, dos anões, no ano 950.
Inicialmente, devido ao fator surpresa, não havia chance alguma para os seus inimigos. Todavia, humanos, elfos e anões se aliaram para combater as forças do mal. Mesmo com grandes perdas, obtiveram a tão necessária vitória.
Os phanticeusianos acreditavam ter destruído a raça nubou por completo, mas isso não aconteceu. Vendo a iminente derrota, cerca de trezentos nubous se refugiaram em cavernas escondidas no subsolo e nada mais se ouviu a respeito deles por mais de três mil anos.

Guerra dos Fantasmas


O ano 3999, às vésperas da passagem do milênio, foi surpreendente para os humanos de Forte Sul. Localizada na parte mais montanhosa do reino de Anger, a cidade sempre fora pacata. Seu maior contratempo eram as constantes nevascas nas proximidades.
Faltando trinta dias para o fim do ano, um exército de nubous surgiu das profundezas do subsolo e começou a atacar a todos. A expressão na face desses seres refletia um ódio que objetivava o completo extermínio das outras espécies. Estavam bem equipados e conseguiram derrubar em pouco tempo parte da muralha que cercava a cidade.
Seus gritos, semelhantes a uivos, ecoavam pelas ruas, acompanhados do barulho das chamas que se alastravam à medida que as casas eram incendiadas. O isolamento fez deles criaturas horrendas – as escamas, antes cintilantes, viraram uma crosta dura como rocha; os cabelos, outrora fartos, foram reduzidos a poucos fios ralos; os olhos tornaram-se cegos, pois os nubous eram movidos por um tipo diferente de visão.
Em meio ao caos, uma comitiva de três cavaleiros conseguiu escapar. Os humanos cavalgaram praticamente sem parar e chegaram à capital Maskáfer após quatro dias, sendo que a viagem costuma durar no mínimo sete. Exaustos, dirigiram-se ao castelo para falar com o rei Morgan III. Ele os recebeu na mesma hora e escutou com temor a notícia. Devido ao caráter emergencial, o rei ordenou que os comandantes diretamente subordinados reunissem as tropas e partissem naquele dia.
Ainda que sem um número expressivo de soldados, os angerianos começaram o deslocamento para o sul. Enquanto isso, a tropa nubou se dirigia para o norte. Nas proximidades da margem sudeste do lago Lyon, os exércitos inimigos ficaram frente a frente. Morgan III constatou o óbvio: estavam em menor número e poder de combate. Mesmo assim, deu ordens para o ataque prosseguir.
Os humanos encontravam-se fadados à derrota e algo inimaginável aconteceu. Vendo a crueldade dos nubous e sua completa falta de sanidade, Céus resolveu agir, apesar de ser contra uma intervenção celestial. Ele juntou-se às tropas angerianas e lutou com garra, levando à extinção a espécie mais cruel que já habitara o mundo de Phanticéus.
Satisfeito com a honra, a bravura e a determinação de Morgan III, Céus presenteou-o com uma pedra preciosa vermelha. Ela representava todas as qualidades dele e garantiria a soberania continuada à sua linhagem, desde que nenhum descendente indigno tocasse na pedra, o que ocasionaria sua imediata ruptura.

Capítulo 1
Planos


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Demetrio Estendo está debruçado sobre o mapa há algum tempo. Por mais que tenha checado todos os detalhes inúmeras vezes, prefere repassar o local de cada cômodo, porta e passagem secreta do Castelo Real.
Enquanto desliza a mão trêmula sobre o pergaminho, a noite vai tomando conta do ambiente. A única vela sobre a mesa está prestes a derreter por completo, então ele busca outras duas em um baú no canto da pequena cabana. Tropeça na pele de urso sobre a qual dormiu na noite passada e quase cai de costas no chão de terra batida.
— Demetrio, seu bobo, não é hora de virar um desastrado. Respire — repete para si mesmo.
O angeriano acende as velas e senta-se no único banco que há. Leva as mãos ao rosto e suspira, impaciente. Seu irmão, Norman, que algumas horas antes partiu a cavalo até Reilos, cidade não distante do abrigo abandonado que acharam no meio da floresta, já deveria ter voltado.
— Isso é loucura — balbucia Demetrio.
Apenas aceitou o plano orquestrado pelo irmão após meses de insistência. Por mais que saiba dos riscos, o rancor que sente é grande o suficiente para deixar de lado o juízo.
Filho adotivo de Draco e Nara Estendo, Demetrio nunca foi propenso a aventuras, o oposto do seu irmão mais velho. Os dois foram criados nos arredores de Alamar, no norte do reino. Nos seis anos de Aprendizado da Escrita e Disciplinas Complementares, que costumam ir dos oito aos quatorze anos, Demetrio era o aluno mais comportado e quem terminava seus deveres primeiro. Norman, por sua vez, adorava conversar com os colegas, duelar pelos corredores, subir nas mesas fingindo ter escalado as mais altas montanhas. Pouco se importava se teria os deveres prontos ou não no fim da aula.
O fruto de seis anos de dedicação foi uma festejada aprovação de Demetrio, que era dedicado, como primeiro da classe. Já Norman rodou o segundo ano letivo duas vezes e teve seu Pergaminho de Aprendizado Básico recebido com muita dificuldade.
— Acorde, irmão — grita Norman, que entra na cabana acompanhado do alfaiate Lúcius, responsável pelos trajes usados pelos empregados da realeza.
— Eu já estava cansado de tanto esperar — fala Demetrio, após leve susto. Ele abraça os recém-chegados, pega o cantil e oferece água.
Lúcius bebe um pouco e alcança para Norman, que joga sobre a cabeça e molha os longos cabelos avermelhados da poeira. O líquido encharca a camisa, que gruda contra o corpo musculoso, em contraste com a cintura avantajada de Lúcius, resultado de anos de alimentação farta, e a estrutura mais magra do irmão, que sempre o venceu na agilidade.
— Vamos ver se serve? — pergunta o alfaiate. Ele tira da bolsa um embrulho grande e joga sobre a mesa. — Costurei um pouco às escuras, mas me parece do tamanho ideal. Vamos lá, experimente.
Demetrio estica a mão e rasga o envelope feito com folhas de árvore. Toca no uniforme da guarda real. O tecido é macio. Nunca vestiu algo de tão fino trato. Troca-se com pressa e confirma: coube perfeitamente.
Lúcius abre um sorriso e bate com as duas mãos gorduchas na barriga.
— Se me botar para lutar contra alguém, pode começar a cavoucar o buraco para me enterrar. Não dou conta. Agora, se pedir para fazer alguma roupa, aí não tem erro. Parece que não vai precisar de nenhum ajuste, eu nem precisava ter vindo.
— Não precisava mesmo — concorda Demetrio, olhando-se com um misto de alegria e apreensão.
— Trabalho feito, está na hora de voltar. Ninguém pode desconfiar que saí tão tarde da pousada — diz Lúcius. — E lembrem-se: aceitei ajudar porque considero a causa justa. Amanhã mesmo já retorno para a capital. Se precisarem de alguma coisa, é só falar. Que Céus os proteja.
O alfaiate abraça os dois e vai embora. Norman acompanha-o até a rua e volta entusiasmado. Demetrio olha para ele com preocupação. Não se perdoaria se acontecesse qualquer coisa. Como falaria novamente com os pais sendo o culpado pela desgraça do único filho de sangue deles? Todo seu amor pelo irmão e melhor amigo lhe deixa inseguro.
— Eu já revisei tudo tantas vezes que estou quase louco. Creio estar tudo pronto — avalia Demetrio. — Você já sabe como fará a sua parte?
— Vou furtar a Esfera da Luz na terceira noite a partir de hoje. Assim que conseguir pegá-la, volto pra cá e te aguardo. Trouxe mais mantimentos para esse meio tempo.
Com cuidado, Demetrio enrola o mapa e guarda-o na parte interna do casaco. Observa seu ajudante com afeição e tem vontade de sorrir. A situação em que se encontram lembra muito as aventuras infantis em equipe. Infelizmente, neste caso, as consequências podem ser muito mais graves que um sermão dos pais.
— Você não deveria estar fazendo isso — desabafa Demetrio, que mais uma vez pensa em desistir frente aos possíveis problemas futuros.
— Lembra quando eu disse que estaria sempre ao seu lado? Vai dar tudo certo, não se preocupe. Além do mais, eu que tive a ideia. Eu te convenci a agir. Nunca, em hipótese alguma, sinta-se culpado por nada.

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Os pássaros cantam alegres. O sol invade a cabana pelas muitas frestas das paredes. Demetrio desperta e vira para o lado. Está sozinho no cômodo. Senta e esfrega os olhos. Como gostaria de ter algum relógio mecânico na parede para saber se já é tarde.
Levanta-se num pulo e caminha até a rua. Norman está sentado sobre o tapete de folhas, escorado contra a parede. Dá dois passos e acomoda-se ao lado do irmão.
— Como acordou? — pergunta Norman.
— Ainda mais apreensivo que ontem.
— Relaxe, por favor. Tanto nervosismo vai atrapalhar a missão.
— Se algo acontecer contigo, como vou pisar novamente na casa do pai e da mãe?
A voz de Demetrio falha um pouco. Ele desvia o olhar em direção à mata, pois teme chorar.
— Nossos pais sabem muito bem o que estamos fazendo e meu papel nisso tudo. Eles nunca te culpariam por nada. Deixe de besteira.
Norman inclina-se um pouco para o lado e abraça o companheiro. Demetrio procura afugentar os pensamentos negativos e dá palmadas nas costas do irmão com carinho. Diz que precisa partir.
Eles entram na cabana e colocam poucos pertences na bolsa. O mais velho abre um sorriso e fala com ternura:
— Eu te amo, meu irmão. Não esqueça de voltar.
— Também te amo, irmão. Lembre de me esperar.
Demetrio Estendo deixa o local e monta em Artigas, seu cavalo. Segura a crina dum preto reluzente, quase azulado, e dá duas batidas de leve com os pés. O animal funga, como se dissesse ter entendido o recado, e começa a trotar pelo caminho de galhos, raízes e pedras.
Após três quartos de hora, chegam a uma pequena trilha que dará na estrada principal. Como Demetrio prefere não enfrentar as íngremes montanhas e a constante neve da Cordilheira dos Azuis, passará por Mesmer antes de chegar à capital.
De onde está até a cidade que serve de entreposto entre Maskáfer e os demais grandes centros do reino, demorará dois dias de viagem. De lá até o destino, mais um.
O trote vira um galope suave e a dupla avança pela estrada bem conservada, plana, cercada por frondosas árvores frutíferas e uma ou outra casa de campo ou pousada.
A primeira parada é feita no meio da tarde. Demetrio deixa Artigas pastando e entra na Estalagem do Mug, um pequeno chalé de madeira de dois andares rodeado por flores amarelas e roxas.
— Gostaria de um caneco de seiva de cárcaras — pede Demetrio, escorado no balcão, após passar por três clientes que conversam entre si.
Mug, anão com apenas dois dentes e barba comprida, balança a cabeça em concordância e despeja o líquido num copo de couro.
— É uma de prata — avisa o dono do estabelecimento enquanto entrega a seiva.
Estendo alcança a moeda e toma sua bebida favorita numa virada só. Solta um arroto baixinho e bate na mesa em agradecimento.
— Se me permite perguntar, vai pra onde?
Demetrio matuta um tempo se deve falar a verdade ou não. Bem sabe que essas perguntas de quem vive no campo são mais por costume do que curiosidade. Após o cliente seguir seu rumo, Mug provavelmente nem lembrará mais dele. No entanto, não vale a pena arriscar.
— Estou indo pra Ertold.
— Viagem longa. Tem um punhado de dias pela frente ainda.
— Nem me fala. Estou fazendo paradas curtas para ver se adianto um pouco a coisa.
— Viagem a trabalho?
— Recebi uma proposta lá.
— Muito bem. Que Céus te guie.
Demetrio agradece e se retira. Chama Artigas, que logo surge mastigando um punhado de plantas. Pergunta se o companheiro está bem. O cavalo ergue as patas dianteiras e eleva a cabeça em direção ao sol. Estendo acaricia o animal e monta. Cavalga até estar prestes a anoitecer. Quando as duas enormes luas já apontam no canto do céu, embrenha-se na mata fechada para passar a noite. Junta alguns galhos secos pela redondeza e bate uma pedra na outra até a faísca virar fogo.
— Artigas, meu amigo, descanse próximo.
O bicho atira-se de lado como se tivesse levado uma flechada certeira. A terra treme um pouco e Demetrio solta uma risada.

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As mãos suam muito. As pernas tremem tanto que é difícil caminhar. Quando resolveu conhecer o pai biológico, sabia que seria desafiador. Chegado o momento, é pior do que imaginava.
Um empregado posta-se ao seu lado e diz que ele pode prosseguir. Demetrio dá alguns passos e empurra a porta. Aproxima-se daquele homem envelhecido e taciturno, diferente do jovem sorridente da pintura que Draco e Nara têm em casa.
Cumprimenta a figura um tanto pálida com um fio de voz quase inaudível. Tosse duas vezes, passa a mão na testa para limpar o suor e conta toda a história. O senhor de barba bem feita, já branca, e cabelos que caem até os ombros, diz ser mentira. Seu tom de voz é calmo, contínuo. Pede para Demetrio sair e nunca mais repetir tal baboseira.
O grito que aquele dia ficara preso no peito, ecoa com força agora. Demetrio acorda ensopado de suor. Foi apenas um sonho, uma lembrança cada vez mais distorcida que de tempos em tempos o assombra.
Um taril, pássaro de bico roxo, pousa em seu peito e olha para ele de lado. Cisca sobre a blusa e salta até a bolsa. Fareja a comida e tenta pegar algo, em vão. Acaba se aborrecendo e bate as quatro asas em direção ao riacho.
Estendo segue-o de longe para encher o cantil. Enquanto está de cócoras, diverte-se vendo o pequeno animal caçar peixes maiores que ele. Pronto, chama Artigas e partem logo para chegar a Mesmer antes do anoitecer.
A cidade, quarta maior do reino, tem cerca de dez mil habitantes. Cortada por dois pequenos rios, Azul e Gelos, conta com largas pontes de concreto que dão caminho para os muitos comerciantes que passam com suas carroças apinhadas de mercadoria. Nas margens, as casas estão grudadas aos mercadinhos, às pousadas e aos bares. É o centro urbano de Anger com mais quartos disponíveis para viajantes. Poucos são os que rumam para a capital e não cruzam por ali. Ao contrário da maioria dos outros lugares, não tem arquitetura bem definida. As janelas ora são grandes, ora pequenas, algumas circulares, outras quadradas. Certas coberturas ainda são feitas de palha, mas a maioria é de telhas vermelhas, azuis, marrons e de tantas outras cores.
Ao chegar, Demetrio apeia e caminha pela Avenida Central, endereço do poder local, da maior escola da cidade, do hospital e de outros prédios importantes. Passa pela praça, que fica às margens do Azul. Nela ergueram uma estátua revestida com prata do deus Morgana e há bancos de madeira bem talhados e jardim com flores de todo tipo.
Avista a Pousada do Dragão e resolve dormir lá. Pede um quarto para si e lugar no estábulo para Artigas. Joga-se na cama e adormece antes mesmo de os últimos raios de sol serem vencidos pela imponência da cordilheira.

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Passa do meio da tarde quando Norman Estendo termina seu almoço. De barriga cheia, vai escorregando devagar até estar estirado ao lado do fogão de barro, que ainda queima o resto da lenha posta para cozinhar a sopa de vegetais.
Os últimos dias de descanso tomaram conta do seu corpo. A preguiça de não fazer nada causa um tremendo sono. Boceja tão longamente que quase esquece de fechar a boca.
Dá uma piscada de mais ou menos três horas. Quando abre os olhos, o sol já está baixo. O susto é tamanho que corre dum lado pro outro, nervoso. Põe os pensamentos em ordem e lembra que só precisa estar em Reilos perto da meia-noite.
Com a adrenalina lá no alto, coração pulsando de modo frenético, resolve sair da mesma forma, ainda que seja cedo. Junta a bolsa, o arco e algumas flechas. Assovia para o seu cavalo, Galapos, que se aproxima vagaroso.
Como o trajeto costuma ser feito em duas horas, avançam com toda a calma do mundo. Enquanto se deslocam, já na via principal, avistam um ser no meio do caminho.
Norman pensa se tratar de um humano machucado e dá duas batidas de leve no companheiro. Mais próximo, percebe estar diante de um mago. A estatura mais alta, os olhos de mel e a pele negra indicam ser filho da fusão de humano e deus.
Estranha a presença dele ali, sentado sozinho no meio da estrada como se estivesse meditando. Só teve contato com alguém desta espécie uma única vez, há cinco anos, no semideserto de Litzfur. Pelo que sabe, não há tantos e eles não gostam muito de deixar o próprio reino.
— Você está bem? — pergunta Norman.
O mago fita o humano por um segundo. Ele usa um longo vestido creme completamente enlameado nas bainhas e tem cabelos curtos e repicados.
— Eu preciso da sua ajuda.
Estendo fica um pouco desconcertado com o pedido e a voz suave.
— Ajuda com o quê?
— Me chamo Nífera. Tenho cento e dois anos e vivo há algum tempo em Reilos. Preciso muito entregar algo para um amigo o quanto antes. O problema é que prefiro andar pelas ruas da cidade apenas tarde da noite, assim não chamo a atenção de ninguém. Mas não posso esperar, de verdade. Ele precisa desta caixa logo.
O jovem levanta-se, estende o braço e mostra o pequeno objeto rústico, não maior que a palma de sua mão.
Por mais engraçado que possa parecer, Norman deixa de lado o pedido e concentra-se em tentar adivinhar a idade humana do mago. Eles vivem em média quinhentos anos, o quíntuplo. Seguindo a lógica, Nífera tem vinte anos, menos que Norman e seus vinte e sete. O humano avalia-o e acha a aparência condizente com essa idade. Sorri distraído.
— Posso interpretar isso como um sim? Garanto que será rápido — argumenta o mago, gentil.
— Sendo realmente rápido, eu levo — responde Norman, que tem tempo de sobra e dificilmente consegue recusar apoio caso alguém precise.
— Você não faz ideia do quão feliz estou — exclama o mago, que entrega a caixa. — No fim dum beco entre a Rua das Abelhas e a Rua do Reinado, há uma porta com uma maçaneta em forma de triângulo. Dê três batidas e lembre de falar que veio a pedido de Nífera. Quem te receberá é Latifa. Você será recompensado pelo seu ato.
— Não preciso de recompensa. É só isso?
— Sim. Que Cillion traga muitas alegrias para você.
Norman guarda o objeto na bolsa e pede para Galapos seguir. Afasta-se intrigado com o que aconteceu. Nunca ouviu falar de magos morarem na região. Os tempos são outros, avalia. Recorda dos avós contarem que antigamente pouco ouvia-se falar de anões pelas redondezas e agora vivem aos montes.
— O mundo tá com mais cara de mundo — fala baixinho pro cavalo, que balança a cabeça concordando.
Não demora muito e eles avistam Reilos. Às margens do lago Lyon, a cidade é a segunda mais populosa do reino, com quatorze mil habitantes, e considerada a mais charmosa. O amontoado de casas de telhas vermelhas lança fumaça de suas chaminés. As ruas são estreitas e os prédios, bem conservados. Há muitas praças, fontes e palácios. Os ladrilhos das ruas – pretos, brancos e vermelhos – formam um espetáculo à parte. O centro também abriga dois dos quatro museus de Anger e um dos mais belos teatros de Phanticéus.
— Que formosura de lugar — exclama Norman.
Ele respira fundo para sentir o cheiro de comida que vem das cozinhas onde preparam o jantar. Sente saudade de comer um peixe bem recheado, cheio de batatas graúdas e maçãs amargas.
— Pareço o papai, Galapos. Dei pra ficar pensando em comida o tempo todo.
O bicho dá uma sacolejada, ri com o corpo todo. Deixa o trote seguir mais preguiçoso quando a terra é trocada pelo calçamento. Olha pros lados para ver se avista algum cavalo que lhe agrade. Não que tenha tempo para ficar enamorado, mas não há problema algum em flertar.
Enquanto isso, Estendo vai cuidando as plaquinhas de esquina. Sabe mais ou menos onde fica o beco, mas a memória não chega à exatidão. Quando encontra o lugar, puxa a crina do companheiro um pouco para o lado para ele ir pelo caminho certo.
Segue as instruções e acha a velha porta de ferro escondida atrás de uma carroça e três barris. Bate três vezes e aguarda. Logo escuta o barulho de trancas sendo abertas e surge um mago de cabelos até a cintura, túnica rosa colada no corpo magro, olhar intimidador e voz grave.
— Posso lhe ajudar?
— Você se chama Latifa?
— Sim, sou eu.
— Nífera pediu para lhe trazer isto.
Norman estende a mão segurando a caixa. Latifa sorri timidamente e abre caminho para o visitante.
— Entre, por favor.
— Tenho outros compromissos, não posso me atrasar.
— Juro que é rápido. Só quero lhe presentear com algo.
— Realmente não precisa.
— Eu faço questão.
Latifa pega a caixa e guia Norman até a poltrona da sala. O lugar é cercado por prateleiras com pequenos potes de vidro de cima a baixo. As ervas armazenadas exalam uma profusão de cheiros que deixa o humano meio tonto. Há também muitos pergaminhos e um caldeirão num dos cantos.
Norman sabe que nem todos os magos possuem os mesmos dons. Alguns deles, segundo os estudos do último ano de aprendizado básico, têm até mesmo mais de um.
— Qual o seu dom? — pergunta Norman, que não consegue conter a curiosidade. Ele provavelmente não conversará tão cedo com outro mago, não custa aproveitar a oportunidade.
— Eu crio poções — responde Latifa, enquanto fuça na pilha de manuscritos. — Já criei fórmulas para várias coisas. Para dar certo, preciso colocar um pedaço qualquer do meu corpo na poção. A quantidade depende do poder que preciso. Geralmente pego alguns fios de cabelo ou restos de unha.
Latifa solta um grito de alívio, finalmente encontrou o que estava procurando. Dirige-se até o humano e pede permissão para colocar uma corrente no seu pescoço.
— Este amuleto dá sorte. Nunca o retire.
Norman olha para a lasca de pedra esverdeada pendurada no cordão. Não confia tanto assim nos poderes mágicos do objeto. No entanto, não vê problema em aceitar.
— Agradeço o presente. Realmente não era preciso.
— Você nos ajudou muito. Merecia mais.
— Bem, vou seguir meu rumo.
Latifa despede-se com um beijo no rosto de Estendo, que, encabulado feito criança que recém descobriu as molecagens adultas, sai em zigue-zague e pula no lombo de Galapos.
— Falta algum tempo para a meia-noite. Vou empinar um caneco antes disso — comenta Norman.
Galapos sabe bem para onde rumar. Não consegue ler o que está escrito nas placas, mas sente o cheiro de seiva fermentada de longe. Logo fareja um bar aberto e para na frente.
O estabelecimento fica a alguns passos da Praça de Áques, no centro da cidade. O espaço público leva o nome do deus dos mares e rios porque abriga a famosa estátua dele segurando a Esfera da Luz – uma grande bola de cristal criada pelo deus que controla a vida aquática e que, aliada a outro objeto mágico qualquer, dá grandes poderes para quem a tem.
A esfera permanece desprotegida no local porque qualquer pessoa que tente encostar nela será desintegrada na hora. Contudo, os Estendo acharam um documento muito antigo dizendo que o objeto permite ser tocado durante a troca dos dias. Norman realmente não faz ideia se a informação é verdadeira ou não. Entretanto, alguém trouxe a Luz até ali de alguma maneira, ou seja, há exceção para a regra.
— Veja uma seiva de ameixeira bem fermentada, por favor — pede Norman para a atendente, mulher duns trinta anos, mãos largas e ágeis, olhar atento para tudo.
— Se tomar dois copos, o terceiro fica por conta da casa — avisa Bárbra, enquanto entrega a bebida.
— É tentador, mas hoje não é dia de ficar tonto.
— Vai apanhar em casa se chegar bêbado mais uma vez?
— Quem dera tivesse alguém para bater em mim.
Bárbra solta uma risada que corre pelo local todo e perde-se em meio à algazarra. Norman também acha graça da conversa.
— Não que eu goste tanto assim de apanhar.
— Sempre achei que esse troço de homem ficar brigando o tempo todo não é só raiva.
— Que isso fique entre nós — sussurra Norman, que se inclina um pouco para frente.
O tempo passa, as pessoas vão se despedindo e, antes das onze horas, o bar fecha. Norman volta para a companhia de Galapos, com quem perambula pelas redondezas enquanto aguarda o horário de agir.
Com o tardar da noite, as ruas ficam desertas. Um ou outro transeunte é avistado, a maioria das pessoas já dorme. Os poucos guardas municipais não permanecem num ponto fixo, caminham de um posto a outro da cidade.
Ao passar pelo Banco de Reilos, Norman olha de soslaio para o relógio no alto da torre. Falta pouco para a meia-noite. Bate de leve com os calcanhares e o cavalo vai um pouco mais rápido. Param em uma esquina ao lado da Praça de Áques.
Norman coloca o arco e a sacola de flechas nas costas, amarra a bolsa de couro na cintura e passa a caminhar. O local está vazio. A Esfera da Luz, imponente na mão de mármore da estátua no centro da fonte, cintila iluminada de longe pelas labaredas do poste de luz.
Estendo esgueira-se até a fonte e entra na água gelada. Reclama baixinho enquanto avança até os pés do deus. Sobe com cuidado e acomoda-se no ombro de Áques. Olha novamente para o relógio. Os poucos segundos que faltam são intermináveis. Desamarra a bolsa da cintura. Ao ouvir a primeira badalada do sino, vinda do Centro de Aprendizagem, fecha seus olhos e joga a bolsa aberta sobre a esfera. Puxa-a com força, quase caindo devido ao peso.
A pressa de partir o quanto antes é tanta que nem consegue sentir alegria por continuar vivo. Desce até a altura da cintura do deus e joga-se na água. Cai de lado, meio atrapalhado. Levanta-se sem dar atenção para o ferimento que abriu no cotovelo direito, pula para fora da fonte e corre em direção ao cavalo.
— O que você está fazendo? — ecoa um grito vindo de suas costas.
Estendo vira-se e percebe ser um dos guardas, que corre até ele com a espada em punho. A bolsa é posta no chão com agilidade e o arco mira o homem que avança desengonçado. O disparo é certeiro. Atingido na perna esquerda, o guarda cai num movimento brusco.
Norman pega a bolsa e monta em Galapos, que veio para o seu lado. Segura a crina com força e pede para o companheiro seguir o mais rápido possível. Enquanto se afastam, conseguem escutar os gritos de socorro do homem atingido.

-X-

Já passa da meia-noite. Demetrio vaga por uma rua muito próxima à muralha que cerca o imponente Castelo Real, em Maskáfer. Finalmente chegou o momento de executar o plano elaborado há meses.
— Pare aqui, meu amigo — fala para Artigas.
Pula no calçamento de rochas negras cortadas em diferentes formas. Ninguém passa por perto. Veste o uniforme real sobre sua blusa surrada e a calça que precisa ser lavada o quanto antes. Abraça Artigas e olha para a muralha que, com seus quase quatro metros de altura, esconde boa parte da edificação.
A área do Castelo Real é grande, faz a capital parecer muito maior do que uma cidade que abriga vinte mil habitantes. Dentro dos muros há um enorme jardim, lagoa, pequena floresta, celeiro, estábulo, pomar, horta, chalés para os empregados vindos de outras regiões e uma área de esportes. O castelo, no centro, tem dois andares e três altas torres de observação. As telhas azuis estão em sintonia com as demais construções da cidade, assim como as paredes pintadas de branco. O primeiro piso conta com o salão de festas, a sala do trono, a maior biblioteca do reino, sala de jogos, de jantar, cozinha e a sala de relíquias, onde a Pedra de Céus está guardada. No segundo andar, há salas de reunião e de descanso e vinte quartos, todos com banheiro.
Demetrio olha para as suas mãos.
— Não trema, seu idiota. Este é o momento de transparecer segurança.
Ele dirige-se a uma passagem destinada aos empregados. Bate com força na porta escondida entre às folhagens. A portinhola de verificação é aberta e um par de olhos esbugalhados mira-o com desconfiança.
— O que você quer?
— Eu me chamo Robert. Sou um dos novos guardas. Vim para assumir o turno da madrugada.
— Qual horário? — pergunta a voz intimidadora.
— Duas horas.
— Um tanto cedo, não acha?
— Vou passar na casa do Hordir, preciso transmitir um recado para ele.
Em um dos encontros que teve com Lúcius, Demetrio foi instruído a mencionar um dos moradores mais antigos. A segurança do local, segundo o alfaiate, não é tão boa. Como são muitos empregados, conseguiria passar sem problemas.
— Não incomode muito aquele velho ranzinza.
As trancas são abertas e a porta é empurrada para dar espaço a Estendo. Ele suspira aliviado e agradece. Caminha pelo jardim que mais parece um labirinto. Confere se tem alguém por perto. Há apenas dois guardas distantes. Desvia do caminho para as casas dos funcionários e dirige-se para a entrada da cozinha do castelo.


— Que Céus me ajude — balbucia.
Não há barulho algum vindo do cômodo. Empurra a porta com cuidado e percebe que ela não está trancada. Esgueira-se para dentro como se fosse uma dessas raposas sorrateiras capazes de furtar todas as moedas de ouro de nossos bolsos sem que seja notado.
As velas dos candelabros já estão apagadas. A escassa fonte de luz vem do corredor em frente. Nervoso, Demetrio vai tateando até sair da cozinha. Olha para os dois lados. Os únicos rostos que avista são os das muitas pinturas na parede. Seus pés alcançam o tapete vermelho que percorre todos os caminhos do castelo, ladeado por esculturas e vasos de flor. Prossegue sem emitir ruído algum. Passa em frente à sala de jantar, às escuras, e chega ao fim daquele corredor. Escora-se contra a parede e espia o caminho em frente à biblioteca.
Há três guardas conversando no salão de festas. Apesar de estarem longe, talvez o vejam, caso avance. Resolve esperar um pouco, apreensivo. Há o risco de ficar muito tempo ali e virem empregados pelo outro lado.
— Saiam logo daí — repete Estendo a cada dez segundos.
Sua paciência está prestes a esgotar quando os guardas finalmente saem do seu campo de visão. Demetrio pega um castiçal e corre até a biblioteca. Enfim dentro, comemora dançando feito seu tio após quatro ou cinco canecos de seiva bem fermentada.
Caminha fascinado entre as muitas fileiras de livros. Há tantas obras – antigas, novas, pequenas, grandes, populares, raras – que fica com a vista embaralhada.
Chega à estante indicada no mapa e começa a retirar todos os livros dela, pois não sabe como acionar a abertura da passagem secreta. Esvazia a fileira que fica na altura de sua cintura, sem sucesso. Tira todas as publicações de uma acima, igualmente sem êxito. Quando está na metade da fileira à altura de seu pescoço, avista um entalhe semelhante a um botão. Pressiona com força e parte da parede começa a se mexer.
Segue pelo corredor estreito segurando com firmeza o castiçal na mão. Por mais que o lugar seja apavorante, é consideravelmente limpo. Deve ser usado com frequência.
Caminha não mais do que vinte metros e acha, à esquerda, a porta que leva à sala das relíquias. Conforme Lúcius, um guarda sempre está de prontidão em frente ao local, que permanece trancado no dia a dia. Desde que Demetrio não faça barulho, não terá problemas.
O invasor arrasta com muito cuidado a pesada porta escondida. O receio é tanto que demora quase dois minutos para abrir espaço suficiente para passar. Quando entra, fica maravilhado com a quantidade de armaduras, joias, coroas e demais artefatos de grande valor. Mesmo sob a pequena fonte de luz que carrega consigo, o ouro reluz de maneira sedutora.
Como o tempo é precioso, deixa de lado a contemplação e dirige-se ao centro, onde descansa a imponente e almejada Pedra de Céus. O objeto parece pegar fogo com a aproximação do castiçal. O vermelho intenso tenta expandir os contornos perfeitos.
Estendo sabe que todas as relíquias criadas por celestiais têm vontade própria. Com medo de quebrar a Pedra de Céus, aproxima a mão vagarosamente. O movimento é tão lento que, ao tocar o objeto, quase não o sente. Ao ver que nada de ruim aconteceu, agarra-o com força e deposita-o dentro de uma pequena bolsa amarrada na cintura.
Concluída a primeira parte da missão, Demetrio começa uma corrida de fuga. Sem dar importância se deixará vestígios ou não por onde passa, corre pela estreita passagem secreta e atravessa a biblioteca num piscar de olhos. Espia escondido atrás da porta. Como não avista ninguém, avança rumo à cozinha. Enquanto caminha, olha para trás, em direção ao salão de festas. Prestes a dobrar para o corredor ao lado, percebe que um dos guardas olha para ele. Apesar do susto, segue como se nada tivesse acontecido.
— O que você está fazendo aqui? — pergunta o empregado.
Demetrio finge não ter escutado e continua caminhando. Quando chega ao corredor ao lado, corre ensandecidamente. Quase em frente à cozinha, esbarra em uma das esculturas, que, assim como Estendo, vai ao chão. Com o impacto, a Pedra de Céus voa pra fora da bolsa e rola pelo tapete.
Em pânico, Demetrio engatinha até ela. Quando põe as mãos na relíquia, a porta da sala de jogos é aberta. O rei e Alexus Maclau, que estavam jogando xadrez, surgem na frente dele.
Estendo fita com raiva a figura envelhecida do monarca. Espreme o objeto valioso como se tentasse transformá-lo em pó. Vira-se para o lado da cozinha e corre.
— Ei, volte aqui — grita Alexus, que é segurado por Morgan IV ao tentar seguir o fugitivo.
— Espere — ordena o rei.
O guarda que havia gritado do salão de festas aproxima-se deles.
— Vamos atrás do ladrão?
— Fique parado aí — fala Morgan, enquanto pensa.
— Eu posso recuperar a Pedra, mas preciso partir logo — argumenta Alexus.
Morgan transparece certo conflito. Recua dois passos, serra os punhos e olha para os lados como se procurasse algo no qual pudesse bater. Precisa de força para falar.
— Vá sozinho, Alexus. Mate-o e traga a Pedra de Céus de volta.
Maclau desembainha sua espada e corre até o jardim. Avista Demetrio distante. Chama Fogo, seu cavalo, enquanto persegue o desconhecido. Prestes a chegar à muralha, escuta o barulho dos cascos de seu companheiro se aproximando.
Finalmente na porta dos empregados, depara com dois guardas caídos no chão, desacordados. Corre para o lado de fora e avista Estendo montando em Artigas e partindo para o lado oeste da cidade.
— Vamos alcançá-los, meu velho — fala para Fogo, que chega ao seu lado.
Pula no cavalo de crina avermelhada que ganhou de presente do pai ao completar quatorze anos. O então potro, oito anos depois, tornou-se um animal muito forte, ágil e esperto.
— Não podemos perdê-los de vista — alerta para o companheiro, que consegue atingir uma velocidade máxima próxima aos sessenta quilômetros por hora, acima da média.
Artigas deixa Maskáfer e segue pela estrada rumo a Norten. Demetrio olha o tempo todo para trás. Maclau está cada vez mais próximo. Precisa mudar sua tática, caso contrário será pego.
— Isso não está nada bom — grita Demetrio. — Eles vão nos alcançar na estrada. Por favor, entre na Floresta das Vespas, Artigas.
O cavalo bate os cascos com força na terra. Vira com brusquidão para a direita e embrenha-se na mata fechada. Sem o auxílio do brilho das duas luas, tapadas por nuvens e pelas copas das árvores, fica difícil seguir adiante.
Muito perto, Fogo avança em meio ao emaranhado de galhos, troncos, cipós e vegetação alta com mais facilidade. Alexus se irrita com a pouca visibilidade. Quando alcança uma clareira e consegue ver a silhueta do fugitivo, grita:
— Desista de fugir. Sua única chance de sobreviver é lutando comigo.
Demetrio vira-se e fita o oponente. Pede para Artigas parar e desce de seu lombo. Maclau faz o mesmo, dá um passo para frente e desembainha a espada. Hesitante, Estendo chega ao centro da clareira e também fica com a arma em punho.
— Que sobreviva o melhor — anuncia Demetrio.
Alexus joga-se contra o inimigo, que se esquiva. Demetrio tenta revidar com um golpe pela lateral, mas é impedido pela força da espada alheia. Maclau recua um passo e prepara-se para atacar novamente. Desta vez, seu oponente é mais rápido e vem com força total. São lançados três golpes sucessivos, sendo que o último fere Alexus na lateral esquerda de suas costelas.
O rasgo aberto na blusa e a mancha de sangue que cresce deixam Maclau furioso. Ele parte para uma sequência de cinco golpes, todos desviados. Após o último, Demetrio aproveita para revidar, no entanto, é barrado pelo opositor, que o bloqueia com tamanha brutalidade que o faz se desequilibrar.
Alexus aproveita a oportunidade para desferir um golpe certeiro no braço direito de Estendo, fazendo-o largar sua espada e cair no chão. Joga-se sobre ele e pressiona a ponta da sua arma contra a garganta do inimigo.
— Qual o seu nome? — indaga Maclau.
Como recebe silêncio como resposta, pressiona a espada com mais força e repete a pergunta.
— Demetrio Estendo — fala seu oponente, com raiva.
Demetrio mexe na bolsa que carrega na cintura e pega a Pedra de Céus. Segura-a com força.
— Por que você fez isso?
— Mate-me logo. Um dia você vai saber e ficará arrependido.
— Por quê?
Estendo cospe no rosto do rival, e a lâmina muito afiada rasga a carne do pescoço com violência. O grito perde-se em meio ao sangue que inunda a boca e verte pelos cantos.
Alexus pega a Pedra de Céus e dá lugar para Artigas, que ruma triste até o corpo do dono. O focinho toca a pele já sem vida de Demetrio. As narinas grandes aspiram o cheiro do companheiro para todo o sempre. As nuvens são afastadas pelo vento e as duas luas mostram com clareza a cena.
Maclau cavouca um buraco não muito profundo. Após meia hora de trabalho, arrasta o corpo de Demetrio até a cova. Empurra a terra de volta e finca a espada do derrotado para sinalizar a sepultura.
Artigas afasta-se e some na escuridão. Maclau coloca a mão sobre o ferimento. Apesar de ter parado de sangrar, dói e será preciso fazer um curativo. Monta em Fogo e pede para ele retornar para Maskáfer.
— Será que realmente vou me arrepender, meu amigo?
Fogo finge não escutar e segue o trote rumo à capital.

Capítulo 2
Baile Real


Passa das quatro horas da madrugada quando Alexus atravessa o principal portão do Castelo Real. Muitos guardas correm à sua volta para saber o que aconteceu. Seus rostos refletem um misto de entusiasmo, curiosidade e preocupação.
— A Pedra está comigo — limita-se a responder. — Onde está o rei?
— O rei está te esperando no escritório dele — avisa Lucy, uma das melhores amigas de Alexus.
O guerreiro desce de seu cavalo com certa dificuldade. O ferimento dói, está com sede e, sobretudo, com sono. Quando escutou o barulho vindo do corredor, horas antes, faltava pouco para dar o xeque-mate e ir para cama. Por mais que tenha como hábito ficar acordado até mais tarde jogando na companhia de Morgan, geralmente é o primeiro a se cansar.
— Fogo, você aceita ir sozinho até o estábulo hoje?
O animal baixa a cabeça em reverência ao dono e segue trotando até seu colchão de feno. Alexus entra no castelo e vai direto para o escritório oficial, no segundo andar. Bate de leve na porta entreaberta e faz Morgan ter um sobressalto.
— Estava te aguardando. Apreensivo — fala o rei, que há poucos segundos cochilava com a cabeça recostada na escrivaninha.
— Deu tudo certo. Recuperei a relíquia.
Maclau tira o objeto da bolsa e estende a mão em direção a Morgan.
— Gregory, venha cá — grita o rei.
O guarda, que faz a vigia no corredor em frente ao cômodo, entra.
— Por favor, pegue a Pedra de Céus e a leve para a sala das relíquias.
Alexus entrega o objeto para o colega, que o segura meio sem jeito, com receio. Gregory diz que fará o solicitado e retira-se.
— Vejo que nem tudo deu certo — exclama Morgan, apontando para o ferimento do amigo.
— Nada que um bom banho quente, um pouco de extrato de babosa e alguns panos limpos não deem conta.
O rei se levanta e aproxima-se de Alexus.
— Como foi?
— Quando ele viu que eu o alcançaria de qualquer jeito, embrenhou-se na Floresta das Vespas. Duelamos numa clareira.
— Ele falou alguma coisa? — pergunta Morgan, após virar-se em direção aos livros na estante.
— Disse se chamar Demetrio Estendo — responde Maclau. Após avaliar por alguns segundos se deve continuar ou não, emenda: — Também disse que um dia eu me arrependeria de matá-lo.
— O que não dizemos para escapar da morte, não é mesmo?
Morgan, até então comedido nos seus atos, vacilante com algumas palavras, muda de tom. Está com pressa para acabar logo com isso.
— Vá para o seu quarto. Vou mandar alguém levar água quente para que você possa tomar um bom banho. Cuide deste ferimento e descanse. Muito obrigado por tudo, nos vemos amanhã.
Eles se despedem e Alexus vai para o aposento. Tira a camisa rasgada e senta-se na cama grande e aconchegante. É o único servidor a ter o privilégio de morar no castelo com a família real e sente desconforto com os luxos que pode desfrutar.
Por mais que as circunstâncias em que conheceu Morgan, há dois anos, e a relação construída com ele lhe deem um status superior ao de empregado, parece muito para alguém que cresceu numa casa simples em Bradário. Sua mãe e seu falecido pai sempre gostaram de pinturas, tapetes feitos com lã de capra que reproduziam figuras mitológicas e móveis bem talhados, mas nada perto do requinte palaciano.
Maclau ouve batidas na porta. Lucy entra segurando um grande jarro com água morna.
— Posso colocar na banheira? — pergunta a guarda de fala ágil e ouvidos sempre prontos para escutar alguma novidade.
— Claro, vou te ajudar.
Enquanto despejam o líquido, Lucy observa o corte nas costelas do amigo. O sangue volta a escorrer, mesmo que pouco.
— Quer que busque extrato de babosa?
— Não precisa. Só vou colocar um pano sobre o machucado. Amanhã vejo melhor isso.
— Você deveria se cuidar mais. Até mesmo destemidos guerreiros podem pegar uma infecção.
— E você deveria ir pra casa, não? Aposto que a Marlin está apreensiva te esperando.
— Deve estar — concorda Lucy, que não se dá por vencida. — Vou indo, mas não se preocupe. No caminho peço para alguém te trazer o extrato.
— Obrigado, mamãe.
— De nada, meu filho.
Alexus ri da brincadeira. Lucy, já na casa dos trinta anos, sempre tratou-o de maneira maternal. O apreço que Maclau sente pela amiga é o mesmo que sente pelo rei, com a diferença de ter um caráter mais informal.
Lucy foi a primeira entre os guardas a conversar com Alexus quando este mudou-se para a capital. Levou-o para um passeio na cidade, mostrou o local dos principais estabelecimentos políticos e culturais, além de apresentar a seiva de borboréu, a melhor de todas, tirada de árvores do território élfico.
— Posso entrar? — pergunta Gregory, após bater na porta.
— Pode — fala Alexus, que está relaxando na banheira.
— Trouxe uma encomenda da Lucy. Vou deixar na mesinha.
— Muito obrigado. Disse pra ela que não precisava.
— Você bem sabe que ela se preocupa como se fôssemos filhos mais velhos dela.
— Como se ter dois não fosse o bastante.

-X-

O toque suave da mão de Mia acorda Alexus. A princesa está sentada na cama, ao lado do guerreiro, e observa-o com ternura.
— Fiquei braba por não ter sido acordada à noite. Você poderia ter morrido enquanto eu dormia sem saber de nada — fala a herdeira do trono, recém adulta, com apenas vinte anos.
— Tudo aconteceu tão rápido — justifica Maclau, que sente o coração pulsar noutro ritmo com a presença dela.
Inteligente e simpática, a princesa é a única filha do casal real. Ela e Alexus foram aproximando-se cada vez mais com o passar do tempo. O jeito tímido dele a encanta, assim como a doçura dela o arrebata.
A relação de amizade acabou transformando-se em amor. Apesar dessa proximidade ser conhecida por todos, Alexus teme o momento que precise encarar Morgan e falar francamente sobre o que está acontecendo.
— Como está o ferimento? — pergunta Mia.
— Não sinto dor. Vou trocar o curativo depois.
— Quer ajuda?
— Não precisa. Não foi nada grave.
Alexus esfrega os olhos, agora um pouco mais desperto, e olha para o relógio na parede. São quase duas horas da tarde.
— Já passou do meio-dia. Preciso me levantar.
— Calma, fique deitado — fala Mia, sorrindo. — O pai resolveu preparar um baile em sua homenagem para hoje à noite. O pessoal está correndo de um lado para o outro lá embaixo, uma confusão sem tamanho. A mãe parece prestes a enlouquecer.
— Não estou tão motivado para dançar.
— Você bem conhece o velho Morgan. Tudo é pretexto para organizar uma festa.
De fato, o rei odeia passar muito tempo sem dar grandes banquetes e promover bailes até o amanhecer. Segundo ele, não faltam motivos para comemorar. Maclau, ciente dessa máxima festeira, não se atreveria a pedir para adiar o evento.
— Vou descer e ajudar a mãe. Deixei comida na mesinha — avisa Mia.
Enquanto Alexus descansa no segundo andar, o primeiro está um caos. Dorothy coordena os preparativos para a noite. Decoração do salão real, cardápio do jantar, músicas a serem executadas pela banda de Maskáfer. São tantos detalhes que parece impossível deixar tudo pronto num só dia – e realmente é para qualquer pessoa que não seja a rainha Dorothy.
Alta, corpulenta e decidida, ela percorre todo o castelo despejando ordens a quem encontra pelo caminho. Sempre afoita, todos gostam dela e até mesmo a acham engraçada. Mesmo sendo mandona, Dorothy nunca destratou ninguém.
Em seu escritório, o rei adianta as tarefas diárias para estar liberado o mais cedo possível. No começo da manhã, ordenou aos seus comunicadores que percorressem a cidade convidando os moradores para a festa. A maioria dos eventos reais é aberta para toda a população, salvo celebrações mais íntimas e algumas cerimônias fechadas. Como o castelo não comporta os vinte mil maskaferianos, adotou-se um sistema de rodízio entre vizinhos.
Sem saber o que fazer para passar o tempo, Alexus vai ao estábulo. No caminho, é parado várias vezes para receber os cumprimentos por ter recuperado a Pedra de Céus. Quando consegue chegar ao repartimento de Fogo, encontra-o descansando sobre o feno. Maclau aconchega-se ao lado e recosta a cabeça sobre o peito do cavalo.
— Se o pai estivesse vivo, provavelmente estaria muito orgulhoso agora — comenta Alexus, que habitualmente desabafa o que sente para o seu amigo.
Marc Maclau era seu mestre em todos os sentidos. Professor apaixonado pelo ofício, ensinou o filho a ler e a escrever na escola. Fora da sala de aula, mostrou como lutar, cuidar da casa e, sobretudo, tratar as outras pessoas. Passados quatro anos de sua morte, Dora Maclau, sua companheira e mãe de Alexus, visita todo dia o local onde ele foi enterrado. Quando estavam juntos, era como se fossem um só. A relação de respeito mútuo estava alicerçada num tipo de sentimento muito raro, muito além do amor. Desejavam o melhor um para o outro mesmo quando tudo ia mal. Não esqueciam de dar um beijo de despedida independentemente do lugar ou da pressa. Passaram a acreditar em vida eterna porque não suportavam a ideia de estarem separados. Entretanto, a vida traz surpresas nem sempre agradáveis.
— Sabe, Fogo, me pergunto se algum dia conseguirei tirar a mãe de Bradário. Não sei se ela suportaria ficar longe das lembranças do velho Marc.
Enquanto Alexus fala, o sol vai sumindo aos poucos no horizonte. A janela aberta permite que os últimos raios façam um trilho de luz no chão coberto de barro, feno e estrume.
— Está na hora de me arrumar. Até amanhã, amigo.
Fogo bate o casco com força e acompanha seu companheiro até a porta do castelo. Aproveitará o resto do tempo livre para passear pelas redondezas. Ele gosta muito de ver o movimento na cidade, principalmente nos dias de festa. O comércio fecha mais cedo e as pessoas transitam de um lado para o outro animadas e bem vestidas.
Da janela do seu quarto, Alexus enxerga os primeiros angerianos chegando. Acostumado com roupas confortáveis para as suas missões, passa um pouco de trabalho sempre que precisa se vestir apropriadamente para ocasiões especiais. O casaco e a camisa feitos de algodão são mais justos do que gostaria, assim como a calça de fios de capras negras e o sapato de tiras tratadas de cipó.
— Posso entrar? — pergunta o rei, após bater na porta.
— Claro. Estou tentando me acostumar com essa roupa.
— Com o passar dos anos, fica cada vez mais fácil.
Morgan veste uma longa túnica azul que aperta principalmente a cintura cada vez mais avantajada. Ele senta-se na poltrona ao lado da porta para o banheiro.
— Pronto para comemorar?
— Inclusive ensaiei uns passos de dança — brinca Alexus.
— Daqui a pouco vou descer com a Dorothy e a Mia. Fique atento. Assim que escutar os aplausos, desça também.

-X-

Por que Demetrio falou aquilo? Alexus não consegue arrancar essa pergunta da cabeça. Não é a primeira vez que tira a vida de alguém em um duelo, mas nunca antes se sentiu tão desconfortável. Nem mesmo da primeira vez, quando os braços tremiam a ponto de afetar seu desempenho.
Sem se dar conta do tempo, Maclau ouve uma explosão de aplausos vindos do salão. Assusta-se e sai correndo do quarto. Desce as escadas aos tropeços e recompõem-se antes de chegar ao primeiro andar. Ao ser avistado, os convidados abrem espaço para que ele passe.
O guerreiro, encabulado, cumprimenta a todos que estendem a mão pelo caminho. Avança até chegar ao lado da família real, que está sentada à mesa, no centro do salão. Morgan levanta-se, abraça o amigo e pede silêncio aos presentes.
— Como vocês sabem, o castelo foi invadido na última madrugada. O ladrão furtou a Pedra de Céus, logo trazida de volta pelo maior guerreiro do reino. Este banquete é um agradecimento da minha família, de todos os maskaferianos e de todos os angerianos a Alexus. Saúde!
As pessoas erguem seus copos e brindam. Mal voltam a se sentar e começam a devorar a comida. A fome iguala-se ao entusiasmo. Os empregados trazem tigelas cheias que são esvaziadas em segundos. Há muitas frutas da estação, além das mais variadas espécies de vegetais comestíveis encontrados no reino e alimentos salgados e doces feitos a partir da mistura de leite de capra com outros ingredientes.
Após mais de uma hora de jantar, a banda de Maskáfer inicia o baile. As mesas centrais são arrastadas para os cantos. A maioria dos convidados escolhe sua dupla para dançar. Entre as músicas, prevalecem trotes de duas passadas e, nos momentos de maior euforia, três.
Dorothy é a primeira pessoa a puxar Alexus para a pista. Meio sem jeito, ele deixa-se levar pela rainha. Após duas músicas seguidas, chega a vez de Morgan rodopiar pelo salão com o amigo. Lucy, que leva muito jeito, é a próxima. Quando Alexus está prestes a dizer que não aguenta mais, Mia aproxima-se acanhada.
Alexus vai ao encontro da princesa e estende a mão em forma de convite. Eles ficam com seus corpos próximos, quase se tocando por completo, e começam a se mover no ritmo da valsa.
Os sussurros espalham-se pelo salão e rapidamente o casal torna-se o centro das atenções. Tanto Alexus quanto Mia ficam corados e têm dificuldade para manter a concentração e não errar o passo.
— Vamos sair daqui? — pergunta Maclau, no ouvido da companheira.
— Espere mais duas músicas. Logo as pessoas vão ficar distraídas e podemos sair sem sermos notados.
Alexus concorda e segue dançando. Quando os olhos atentos dos demais voltam-se para outros pontos, o par vai de fininho até o jardim. Na rua, o ar gelado provoca arrepios nos corpos suados que acabaram de sair do salão com temperatura aconchegante. Há muitos convidados passeando pelo local, principalmente ao redor da fonte, e o casal desloca-se para um canto mais isolado.
— Eu estou até meio zonzo de tanto dançar — fala Alexus.
— E ainda assim é considerado o maior guerreiro do reino? — brinca Mia.
— Nessas horas, fico imaginando o quão ruim deve ser o pior.
— Aposto que ele consegue aguentar alguns trotes e valsas.
— Não com o mesmo entusiasmo e desenvoltura.
Mia senta-se em um banco de madeira ao lado de um pequeno lago. Alexus acomoda-se junto a ela.
— Venha mais perto — pede Mia —, assim a gente pode se esquentar.
— Assim está bom? — pergunta Maclau, que corre a mão pela cintura da princesa e a abraça.
— Sim — responde Mia, após repousar sua cabeça no ombro de Alexus.
— Eu deveria falar com o rei sobre nós. O que você acha?
— Concordo, apesar de tudo isso me deixar aflita.
— Aflita?
— É uma grande mudança passar a compartilhar sua vida da forma mais íntima possível com outra pessoa.
— Mas você quer isso?
— Claro que sim. E você?
— Muito, mas tenho medo de falar com seu pai.
— Por quê?
— Tenho medo de ele não me achar adequado para você.
— Não seja bobo, ele gosta tanto de você. Todo mundo percebe que ele nos quer juntos.
— Não mais do que eu.
— Te amo.
— Também te amo.
Mia eleva seu rosto e eles entreolham-se por algum tempo. Alexus a beija.

Capítulo 3
Duelo com um dragão azul

Lírius38, 4056.

São quase oito horas da manhã quando Alexus desperta. O baile o deixou tão exausto quanto a luta com Demetrio. No entanto, cansado ou não, é preciso treinar. Ele troca as ataduras que cobrem o machucado e veste uma roupa confortável para a rotina de exercícios.
Maclau passa pela cozinha, pega duas maçãs alaranjadas, que são incrivelmente doces e suculentas, e vai comendo até a área de treinamento. Começa correndo quinze minutos na pista de obstáculos. Alonga-se e vai para o setor de bonecos de madeira para treinar chute e soco. Fica quase uma hora no local, intercalando sessões de dez golpes com períodos de descanso. Libi, uma das guardas que costuma exercitar-se no fim da manhã, aproxima-se.
— Preciso de um oponente.
— Deixa comigo — entusiasma-se Alexus.
Eles vão para a área de lutas ao lado e pegam duas espadas sem fio.
— Melhor de nove? — pergunta Libi.
— Perfeito.
Ciente de que já está cansado, Maclau adota a estratégia de poupar o máximo de esforço. Isso provavelmente custará algumas derrotas, pois Libi é muito boa. Todavia, dar o máximo de si em todos os embates fará com que talvez nem chegue ao nono.
Quando acabam a última luta, Alexus ajoelha-se e fica observando o suor gotejar em direção ao chão. Não tem força para comemorar a vitória de seis a três. Libi, ofegante, atira-se na areia.
Distante dali, o sino da torre do Centro de Aprendizagem badala indicando ser meio-dia. Maclau agradece a companhia de Libi e corre até o castelo. Toma banho o mais rápido possível e desce para almoçar com a família real.
— Desculpem-me pelo atraso. Perdi a hora treinando — justifica, após sentar ao lado da rainha.
— Achei que você nem conseguiria treinar hoje de manhã — fala Mia, sentada do outro lado da mesa.
— Esses jovens tiram força não sei de onde — comenta Morgan, que está na cabeceira mais próxima.
— Tiram do mesmo lugar que você tirava — lembra Dorothy.
— Se já fui jovem, esqueci — retruca o rei.
Persus, o mensageiro, pede licença e entra.
— Desculpe interromper o almoço, majestade, mas aconteceu algo grave.
— O que foi, meu caro?
— Nós recebemos uma carta da águia-correio de Reilos. O governador Ronald Spucios III informa que a Esfera da Luz foi roubada e solicita a ajuda da coroa para recuperar a relíquia.
— Como alguém conseguiu roubá-la?
— Ele não dá detalhes.
— O que você acha de ir para Reilos? — pergunta o rei, voltando-se para Alexus.
— Posso preparar meus pertences após terminar o almoço e saio no início da tarde.
— Excelente! Persus, responda agora mesmo que Alexus está indo. E lembre o rabugento do Ronald que ele vale mais do que uma tropa inteira.
— Entendido, majestade. Enviarei a águia-correio de volta o mais rápido possível. Com licença.
— Se você me der licença — emenda Alexus —, também vou me retirar.
— Termine o almoço primeiro. Dez minutos não farão diferença alguma — responde o rei, um tanto empolgado com o novo mistério. — O que terá acontecido em Reilos?

-X-

Alexus coloca um pote de extrato de babosa, algumas ataduras, mantimentos para quatro dias e um casaco na mochila. Como quer chegar logo à cidade que fica às margens do lago Lyon, passará pela temida Cordilheira dos Azuis. Está decidido a não contorná-la, como de costume.
— Posso entrar? — pergunta Mia, após bater.
Maclau consente e vai em direção à amada. Abraça-a com força e beija sua boca longamente, como se tentasse memorizar o gosto da saliva, o toque dos lábios, o calor que percorre todo o corpo.
— Sentirei saudade.
— Também vou sentir.
— Espero resolver tudo o quanto antes e voltar.
— Estarei torcendo para ocorrer da melhor maneira possível.
— Fique bem.
— Que Céus te proteja.
Alexus despede-se da princesa, pega a mochila e vai até o estábulo encontrar Fogo. Monta no seu companheiro de aventuras, que sai trotando pelo pátio. O relógio do Centro de Aprendizagem Avançada indica ser quase duas horas da tarde quando a dupla passa em frente à praça principal da cidade. Ao deixarem Maskáfer, Fogo aumenta o ritmo em direção às íngremes e gélidas montanhas que estão no meio do caminho.
A Cordilheira dos Azuis recebeu esse nome por ser um dos poucos lugares de Phanticéus que abriga os imponentes dragões azuis. Com cerca de cinco metros de altura, dez de comprimento e vinte e cinco de envergadura quando adultos, eles têm escamas azul-petróleo e grande força, apesar de não cuspirem fogo como seus parentes, os dragões lava. Ainda que temidos pelos angerianos, dificilmente são vistos, pois não deixam a cordilheira com frequência, voam em grandes altitudes e são poucos no mundo.
Além da presença desses gigantes do céu, outro fator costuma afugentar os andarilhos. A neve constante dificulta bastante a passagem e faz com que a quase totalidade prefira gastar um dia a mais de viagem passando por Mesmer.
Mesmo não havendo um caminho muito claro a ser seguido, Alexus e Fogo já passaram algumas vezes pelo local e conhecem o percurso. O cavalo sabe ainda melhor que o humano e avança sem precisar ser guiado.
Quando a dupla está próxima da encosta sul, o sol começa a sumir no horizonte e Alexus decide passar a noite ali. Eles param ao lado de uma fenda na montanha que poderá servir como abrigo.
— Que tal dormirmos por aqui mesmo? — pergunta Maclau.
Fogo balança a cabeça em concordância. Alexus vai até uma árvore próxima e arranca dois galhos. Forra o pequeno espaço da fenda, senta-se e faz sinal para o amigo deitar ao lado. Tira alguns vegetais da mochila e divide-os para os dois. Eles comem com calma e logo adormecem.

-X-

O frio intenso parece abrir cortes no rosto de Alexus a cada rajada de vento. Ele caminha em um bosque onde a vegetação rasteira mistura-se com corpos em decomposição. Ao pisar neles, os pés afundam em uma massa cada vez mais deformada. Os galhos das árvores são revestidos de cabelo humano, que formam imensas teias. As folhas estão murchas, mortas, prestes a cair a qualquer momento.
Alexus leva a mão ao rosto para coçar o nariz e percebe que ela está ensanguentada. Ambas estão. Observa-as com um misto de medo e fascínio. Não consegue lembrar o que aconteceu.
Uma voz distante pede para que volte, mas ele não avista ninguém. O pedido se torna cada vez mais alto e é impossível de ser ignorado. Maclau desembainha sua espada e corre desesperado à procura de quem o chama. Rapidamente os gritos tornam-se um barulho estridente, quase ensurdecedor. O bosque ao redor de Alexus desaparece e ele acorda.
Os corpos em decomposição dão lugar à neve espessa. O pedido de ajuda é trocado pelos relinchos de Fogo, que está aflito. O som estridente, uma mistura de uivo com rugido num tom agudo, continua, vem de um enorme dragão azul que pousa muito próximo a eles.
O coração de Alexus pulsa como nunca. Ele pega sua espada e monta em Fogo. Partem deixando a mochila com os demais pertences.
Quando estão prestes a alcançar a parte mais densa do bosque, o dragão levanta voo e dá um rasante na direção deles. O imenso animal agarra Alexus com as patas traseiras e leva-o consigo. Ganha altitude e some do campo de visão de Fogo, que fica desesperado.
Pressionado pelo dragão, Maclau tenta se soltar. Debate-se em vão. O animal sobe cada vez mais alto. Aterrorizado, Alexus consegue soltar seu braço esquerdo e pega a espada. Um tanto desajeitado, desfere golpes nas patas do seu raptor, que emite um barulho horrível de dor.
O voo torna-se instável e eles começam a perder altitude. Maclau sorri e crava a espada com força, abrindo um corte profundo no dragão. Sua alegria, todavia, logo se esvai. O dragão sacode-se com força e quer se livrar da presa. Alexus abraça a pata esquerda enquanto é agitado freneticamente. Sabe que não aguentará por muito tempo e faz o possível para resistir mais um pouco, pois continuam descendo.
Quando estão a uma altitude de vinte metros, o dragão consegue se livrar do incômodo. Maclau é arremessado contra uma árvore e quebra meia dúzia de galhos durante a queda. Ao chegar ao chão, onde se espatifa de costas, solta um berro.
Por mais que o corpo esteja doendo, é preciso correr, pois o dragão pousa não muito distante, enfurecido. Alexus pega a espada, que foi arremessada próxima a ele, e esconde-se atrás de uma árvore na esperança de que o animal vá embora. No entanto, o dragão consegue farejar sua presa e avança abrindo uma clareira por onde passa.
Maclau respira fundo e corre para o centro do bosque, em um caminho de descida. Mesmo desorientado, consegue perceber que está no meio da cordilheira, em uma das florestas internas. Ele achou que as grandes árvores poderiam deter o dragão, mas estava errado. O animal abre espaço e avança.
Sem alternativas, Alexus pega uma das pedras que acha ao seu redor e atira no gigante enfurecido. Chama a si mesmo de tolo após perceber que o ato de nada adiantou. Corre um pouco mais para baixo e abre um sorriso ao avistar um lago congelado no centro do bosque. Pensa em fazer com que o gigante seja tragado pela água. Não há como saber se é uma solução eficaz, já que o guerreiro não faz a mínima ideia se dragões têm habilidades aquáticas. Ele também não sabe a profundidade do lago ou a espessura do gelo. De qualquer forma, é o único plano que consegue pensar para ganhar tempo e fugir.
Alexus esquece as dores no corpo e corre desesperado até o lago. O dragão vem atrás, deixando um rastro de sangue por onde passa. Só não alcança o humano por causa da grande quantidade de árvores velhas e resistentes pelo caminho.
O guerreiro tropeça e rola até a superfície congelada do lago. Levanta num piscar de olhos e continua a fuga. Quando o dragão chega ao local, o chão estremece, mas o gelo não se parte. Maclau fica ainda mais nervoso e segue correndo, sem olhar para trás. O animal aumenta a velocidade e se aproxima. Quando falta pouco para abocanhar sua almejada refeição, um estrondo anuncia que o gelo finalmente se partiu. O dragão é engolido pela água.
Ciente de que esta é provavelmente uma solução provisória, Alexus embrenha-se novamente na floresta e acha um abrigo seguro em uma fenda onde consegue se ocultar.
Após quase meia hora escondido, resolve sair. Tenta aguentar a dor excruciante mais um pouco, mas está tonto e nem ao menos consegue enxergar direito. A certeza de que logo desmaiará o aflige. Caminha vagarosamente enquanto pode, mas sua fraqueza é tanta que, poucos metros depois, nem mesmo isso é possível. Ajoelha-se e escuta um barulho nas proximidades. Uma figura aproxima-se dele. Alexus está tão zonzo que fica confuso. Teme ser o dragão chegando e engatinha na direção da fenda onde estava. Sua exaustão faz com que quase não saia do lugar. Enquanto isso, a figura fica cada vez maior. Para ao lado e toca no guerreiro.
— É você, Fogo?
O animal bate de leve com a cabeça do peito do seu dono, que agradece a Céus por ter sido encontrado pelo melhor amigo.
Maclau junta o resto de força que ainda tem para montar. Tenta falar, mas logo desmaia. Fogo, que teme pela vida do humano, não perde tempo e ruma para fora da cordilheira. O sol começa a raiar enquanto desce a encosta sul. Ao chegar à floresta dos campos baixos, para em frente à primeira casa avistada. Cerca da metade da população do reino vive fora das cidades, sendo que não é tão difícil passar por uma moradia rodeada por plantações, mesmo nas estradas mais isoladas.
Fogo bate com o casco contra a porta e uma mulher de meia idade atende. Horrorizada com o estado de Alexus, que continua desmaiado, grita para o seu companheiro ajudá-la a carregar o homem ferido para dentro.
O segundo morador aparece em segundos. Quase muito alto para os padrões humanos, barba espessa até o meio do peito, ele ajuda a levar Maclau até o sofá. Enquanto Fogo aguarda na rua, seu dono recebe os cuidados necessários.
Duas horas depois, Alexus acorda. Confuso, olha para a sua volta e depara com uma sala em estilo rústico. As janelas abertas deixam passar uma brisa agradável. Tem dificuldade para respirar e leva a mão ao peito. Apesar dos hematomas, seu corpo está limpo. Os ferimentos maiores foram enfaixados.
Olha para a parede e avista três pinturas. A primeira é de um casal em sua festa da união, as duas pessoas com flores na cabeça, cercadas de familiares e amigos. A festa da união é uma das celebrações mais sagradas do povo phanticeusiano, pois marca o dia em que o casal decide morar junto e compartilhar suas vidas. A segunda pintura mostra as mesmas pessoas, agora mais velhas, ao lado de duas crianças, um menino e uma menina. A terceira mostra esses dois jovens, provavelmente filhos do casal, ao lado de seus cavalos.
— Veja quem acordou — fala a senhora da pintura, que se aproxima sorridente. Ela curva-se ao lado de Maclau e ajuda-o a ficar sentado.
Alexus já apresenta melhoras. Os humanos, assim como as outras espécies, possuem uma capacidade de recuperação muito boa.
— Tenha cuidado — pede a mulher. — A propósito, eu me chamo Vivian Sparter e este é meu companheiro, Jorge Corsal — ela aponta para o grandalhão que a seguiu até a sala.
— Sou Alexus Maclau. É um prazer conhecer vocês. Não tenho palavras para agradecer pelo que fizeram por mim. Nunca tive tanto medo quanto quando caí nas garras de um daqueles dragões horríveis.
— Não é preciso agradecer. Fizemos o que faríamos por qualquer um precisando de ajuda — comenta Vivian. — Eu já vi azuis de longe e deu um misto de fascinação e completo horror.
— Aquele grandalhão certamente me fez um pouco menos prepotente.
— Então fez algo de bom para você — exclama Jorge. — Aliás, quando estiver melhor, lembre de agradecer seu amigo que aguarda lá fora.
— Como está o Fogo?
— Bem.
Jorge ajuda o hóspede a ficar de pé e caminhar até a janela para ver o cavalo, que descansa ao lado de uma fonte d’água.
— Preciso conferir se ele está pronto para seguirmos viagem — fala Alexus. Apesar de estar debilitado, precisa chegar logo a Reilos.
— De forma alguma você sairá desta casa hoje — contesta Jorge. — Seus ferimentos não são tão leves assim e precisará no mínimo de mais uma noite de descanso antes de poder continuar sem passar mal no caminho.
— Estou em uma missão real. Não posso parar.
— Atrasar um dia é melhor do que morrer no meio do caminho, não é mesmo? — argumenta Vivian. — Deite novamente que vou buscar uma sopa de vegetais. Fiz enquanto você dormia. Ela é rica em nutrientes e vai ajudar a restabelecer a saúde logo.
A barriga de Maclau já está suplicando por algum alimento e ele não se atreve a retrucar. Vai até o sofá e aguarda. A dona da casa retorna em seguida com uma tigela fumegante.
Ao sentir o cheiro da mistura de vegetais, o aroma de ervas, Alexus não se controla e sorve tudo como se corresse contra o tempo.
— Devagar aí, meu amigo — gargalha Jorge. — Vai ficar com dor de barriga desse jeito.
— Estava com muita fome.
— Deu para perceber — fala Vivian, que também sorri e leva a tigela até a cozinha. — Por favor, desta vez não engula tudo de uma vez só — recomenda, quando retorna com mais alimento.
Maclau toma a sopa com calma e consegue sentir o quão saborosa é. Lembra um pouco o almoço que era feito pelo seu pai, que gostava de misturar temperos.
— Estava excelente — diz, após esvaziar a tigela.
— Que bom que gostou — fala Vivian. — Agora trate de descansar. Nós vamos dar comida para o Fogo e cuidar da horta. Durma o máximo que conseguir e nos chame se precisar de algo.

-X-

Quando Alexus acorda, o sol já está se pondo. Como o corpo está menos dolorido, caminha até o pátio para encontrar Fogo. O cavalo fica contente ao vê-lo e enche-o de afagos. A alegria é tanta que quase machuca o humano.
— Muito obrigado, meu amigo — fala Maclau.
Fogo bate com força as duas patas dianteiras na terra. É perceptível o quão genuíno é o apreço que ele sente pelo companheiro.
— Alexus, como você está se sentindo? — pergunta Vivian, que volta da horta com uma enxada na mão.
— Bem melhor. Pronto para enfrentar outro dragão.
Vivian sorri e passa a manga da camisa na testa para limpar o suor misturado à poeira.
— O Jorge voltou antes para preparar o jantar mais cedo. Se quiser, faça companhia para ele na cozinha enquanto tomo banho. Ele é seu fã, mas não diga que eu contei.
— Irei até ele, sim.
Alexus despede-se do amigo e entra na casa.
— O cheiro do jantar está ótimo — comenta.
— Anos de prática — diz Jorge. — Você quer acender a lareira?
— Por mim, não precisa.
— O frio desce as montanhas com mais intensidade à noite.
— Vocês sempre moraram aqui?
— Desde que resolvemos nos unir. Nossos pais moram mais perto de Reilos.
— E as crianças nas pinturas da sala são seus filhos?
— Sim. Ambos já são adultos e não moram mais aqui. Roll está em Forte Sul e Biali trabalha em um barco de transporte que viaja por boa parte da costa. Vivian e eu estamos pensando em talvez ter outro.
As mulheres phanticeusianas costumam estar em idade fértil entre vinte e setenta anos – e como Vivian não completou cinquenta, é perfeitamente possível dar à luz ainda.
— Você pensa em ter filhos, Alexus?
— Gostaria. Só prefiro esperar algum tempo para poder estar mais presente.
— Bom ponto.
— Como foi a paternidade para você?
— Costumava ficar muito tempo fora, pois era da guarda real. Larguei o emprego para estar com a família, mas demorei anos para fazer isso. Roll e Biali já eram adolescentes e passavam mais tempo na casa dos avós para ir à escola. Ainda que eu ficasse entusiasmado com todas as aventuras que tinha pela frente, ter o amor de Vivian era muito melhor.
— Foram muitas aventuras antes de deixar a guarda?
— Algumas. Certamente menos impressionantes que as suas.
— Conte-as, por favor.
— Após o jantar. A comida ficou pronta.
O anfitrião leva a panela até a mesa e, ao retirar a tampa, o cheiro toma conta do cômodo. Carne e batatas graúdas bem temperadas.
— Que carne é esta? — pergunta Alexus. Dificilmente os angerianos comem carne. Quando consomem, geralmente é de algum animal agressivo que cruzou pelo seu caminho.
— Leão surrucus — responde Jorge. — Eu enfrentei um há algumas semanas. Por algum motivo ele chegou na região e me atacou. O bicho era tão grande que ainda temos alguns quilos defumados.
— Que cheiro ótimo — fala Vivian, que entra no cômodo e senta-se à mesa. — Venham, vamos jantar logo.
Alexus e Jorge juntam-se a ela. Os três pratos são cheios e esvaziados mais de uma vez cada.
— Foi difícil matar o leão? — questiona Alexus.
— Tentei evitar o confronto o máximo possível. Fugi enquanto pude. Quando vi que não tinha mais jeito, parti para cima. É uma pena que tenha ocorrido.
Após lamentar, muda de assunto:
— Sabe, sempre conto a história de como conheci Vivian.
— Conta mesmo. Para todo mundo — emenda a companheira.
— Ela estava fugindo de um enxame de vespas, não muito distante daqui. O problema é que ela não conhecia a mata e corria sem rumo. Por acaso, acabou cruzando comigo. Adivinha? Fui obrigado a correr junto para não ser pego pelas desgraçadas.
— Ele ficou morrendo de medo — sorri Vivian.
— Fiquei mesmo, mas consegui botar a cabeça para funcionar. Segurei a mão desta louca que eu amo tanto e fui direto para o riacho que estava próximo. A gente se atirou na água com tudo e ficamos uns dois minutos submersos. Quando não aguentava mais prender a respiração, emergi e as vespas tinham sumido. Aí vem a parte mais bonita da história. Ela bota a cabeça para fora e tosse água na minha cara. Assim eu me apaixonei.
— O amor e seus mistérios — fala Alexus, gargalhando.
Todos riem. Após o jantar, vão para a sala tomar seiva fermentada e a conversa dura algumas horas. Só resolvem dormir quando ninguém mais consegue manter os olhos abertos.

-X-

Pássaros acordam Maclau com uma melodia muito suave. Ele espreguiça-se e segue até o banheiro para lavar o rosto. Após uma noite de boa conversa e descanso, está melhor. Os ferimentos doem menos e poderá seguir sua missão sem medo de passar mal.
— Pronto para partir? — pergunta Vivian, após o hóspede entrar na cozinha.
— Sim. É como se eu tivesse renascido.
— Nós colocamos alguns mantimentos em uma bolsa velha — avisa Jorge. — Leva ela.
— Não tenho palavras para agradecer por tudo que vocês fizeram por mim — fala Alexus. — Quando forem para Maskáfer, me visitem no Castelo Real, por favor. Espero revê-los em breve.
— Te visitaremos. Há muito para ser contado ainda — comenta Jorge.
Alexus abraça o casal, pega a bolsa e vai até Fogo, já ansioso para partir. Monta no seu amigo e segue rumo a Reilos. Para não comprometer mais sua saúde, avança com calma.
O dia está bonito, há poucas nuvens no céu. À medida que se afastam da cordilheira, o clima assume feições mais primaveris. Boa parte das árvores frutíferas está carregada de frutos e as flores começam a desabrochar. Um misto de cores vibrantes toma conta da floresta que cerca a estrada. Os animais correm de um lado para o outro e carregam alimentos entusiasmados.
Na hora do almoço, Fogo para ao lado de um córrego de água límpida. Há muitas nascentes ao redor do imenso Lyon, maior lago phanticeusiano, rico em vida aquática e mistérios.
A tarde passa lentamente, no ritmo do trote do cavalo. Já são quase onze horas da noite quando a dupla chega à cidade. Devido ao horário, Alexus sabe que não é mais possível encontrar alguém no Centro de Administração Distrital. Vai direto para a casa do governador do Distrito de Reilos, Ronald Spucios III. Ao se apresentar, os empregados abrem um sorriso cordial e dizem que Ronald já se retirou para dormir. Entretanto, deixou ordens para que o guerreiro que vinha da capital fosse acomodado, caso chegasse durante aquele turno. Cansado, Alexus pede para comer algumas frutas no quarto e adormece antes de dar a última mordida em uma maçã alaranjada.

Capítulo 4
O Elo dos Três Magos

Lírius41, 4056.

Mal amanhece quando um dos empregados bate na porta do quarto onde Alexus repousa. O guerreiro levanta a contragosto. Um tanto perdido, veste a calça e vai ver quem é.
— Bom dia. O governador o espera na sala de refeições — avisa o jovem guarda.
Maclau sente uma pontada de aborrecimento pela forma como é acordado. Parece estar atrasado para uma reunião que nem ao menos foi marcada. Verdade seja dita, não há nada de inadequado no pedido. Ocorre que seu corpo ainda dói, o que faz com que o bom humor às vezes não seja o atributo em destaque.
— Desculpe ter acordado você, preciso sair para trabalhar mais cedo e julguei melhor conversar antes — justifica Ronald, sentado na cabeceira da enorme mesa de madeira talhada em detalhes, ao avistar Alexus entrar. — Sente-se ao meu lado para comer.
— Já estava na hora de despertar — fala o hóspede, com seu melhor sorriso, enquanto fatia o pão de farinha de batata graúda com ervas doces.
— Experimente esta geleia de frutas vermelhas — aconselha Ronald, com sua voz fina e seus trejeitos expansivos. Ele alcança o recipiente com uma mão e toma chá com a outra. Logo empurra mais pratos para perto de Alexus. Seus movimentos são ágeis, parece se sentir incomodado com o silêncio. — Um dia tão lindo, uma cidade tão encantadora. Pena você ter de vir aqui para resolver algo desagradável. Ainda busco entender como alguém conseguiu tirar a Esfera da Luz de nós. Tantos e tantos anos com tentativas ineficazes, parecia ser impossível ocorrer. Agora ela se foi e temos um guarda ferido. Nada grave, não se preocupe. Ao menos o ladrão não matou ninguém.
— Fique tranquilo, governador. Resolverei isso logo — avisa Maclau.
Ronald sorri satisfeito.
— Confio em ti. Vamos para o escritório continuar a conversa? Não posso me atrasar e ainda temos algo importante para tratar — fala Ronald, já levantando, sem esperar seu convidado responder. — Sabe, ser governador é uma tarefa complicada. Trabalho em conjunto com os prefeitos, preciso cuidar de toda a população da região. Sou o representante do chato do Morgan por aqui.
— Vejo que você e o rei têm uma forma muito parecida de demonstrar o carinho um pelo outro.
— Fomos colegas de aula. Cresci em Maskáfer. Nos tornamos grandes amigos e temos esse jeito um tanto peculiar de expressar nosso amor.
— Bem peculiar — sorri Alexus.
Eles entram no escritório, que está abarrotado de livros. Por não ter mais espaço nas estantes, há obras espalhadas por todos os cantos. Spucios até pede para o visitante não reparar na bagunça, mas é um pouco difícil.
— Eu vou aumentar o tamanho deste cômodo — emenda Ronald. — Tem um quarto inútil ao lado, então vamos destruir a parede e o escritório vai dobrar de tamanho. Estou entusiasmado com isso. Já imagino todos os livros nas prateleiras novas. Até quero mais alguns, só que preciso esperar a reforma. Empilhar tudo no chão é até um desrespeito com os autores. Muitos são meus amigos, o que diriam se vissem suas obras jogadas?
— Provavelmente ficariam magoados.
— Claro que sim. Eles escrevem com tanto amor e dedicação. Depois, sem coração algum, vem um Ronald da vida e joga os livros como meros objetos sem alma. Essas obras têm alma. A literatura tem alma.
Enquanto o governador fala, a porta é aberta e três magos entram após pedirem licença. Ronald os abraça de maneira afetuosa. Alexus, intrigado com a cena, assiste a tudo quieto.
— Deixe eu fazer as apresentações — fala Spucios. — Este é Nífera, mago de cento e dois anos. Ao lado temos Latifa, que já faz poções incríveis e só tem noventa e sete anos. Ali atrás, mais tímido, você pode ver Strória, o mais novo do grupo, com noventa anos. Gosto de frisar as idades deles, pois me sinto jovem. Este belo trio trabalha para o governo. Meninos, este é o Alexus Maclau, o principal capanga do velho Morgan. Ele nos ajudará a recuperar a Esfera da Luz.
— Prazer em conhecê-los. Não sabia que havia magos a serviço da coroa — comenta Maclau.
— Até onde eu sei, somos apenas nós três — diz Nífera.
— Também desconheço a existência de outros, apesar de estarem cada vez menos isolados. E estes são subordinados diretos ao rei, com conhecimento apenas dos governadores e alguns chefes da guarda — acrescenta Ronald. — Bem, vamos focar no sumiço da relíquia símbolo de Reilos. Vocês têm alguma novidade, meninos?
— Trouxemos uma ótima notícia — exclama Latifa. — A pedra voltou a brilhar. Ontem, ao irmos dormir, ela continuava sem funcionar. Hoje cedo, reluzia.
Latifa mostra uma pedra esverdeada que cabe na palma da mão e fica iluminada dependendo para onde é apontada. Enquanto o governador comemora, Alexus olha para os outros sem entender.
— Deixa que eu explico — diz Nífera. — Tenho o dom de prever o futuro. Contudo, não posso interferir diretamente nele. É um pouco complicado saber os limites, ainda estou tentando entendê-los. Ou melhor, expandi-los. Falando especificamente sobre o roubo da Esfera da Luz: ao prevê-lo, não tentei fazer com que não ocorresse, mas tratei de achar um jeito de localizar o objeto após ser levado. A forma encontrada foi pedir para o Latifa fazer uma pedra-guiadora. Dei para Norman Estendo o pedaço menor dela sem ele saber a verdadeira natureza do objeto. A segunda parte, que é maior, ficou conosco e indica a direção da outra.
— O problema é que a pedra parou de funcionar na noite do roubo — Latifa toma a palavra. — Acredito que isso tenha acontecido por uma interferência da Esfera da Luz.
— Vocês podem repetir o nome do ladrão? — pede Alexus.
— Norman Estendo.
— E vocês sabem qual a ligação dele com Demetrio, que tentou levar a Pedra de Céus?
— Eles são irmãos — responde Latifa, que entrega a pedra-guiadora para o pensativo Maclau. — Nós temos um problema mais sério para solucionar agora. Se minhas suspeitas estiverem corretas, a nossa pedra só voltou a funcionar porque Demetrio já não está mais com a relíquia. Isso certamente dificultará nosso trabalho.
— Sem problemas — exclama Alexus —, vou arrancar a verdade dele de qualquer forma.
O guerreiro guarda a pedra-guiadora no bolso e pergunta se precisa saber mais alguma coisa antes de partir.
— Por acaso você conhece a história da Esfera da Luz? — pergunta o governador.
— Sei sobre as mortes causadas pelo toque. Não sei como agir caso a encontre.
— De preferência, não encoste diretamente nela, use luvas, alguma coisa. É provável que isso não ajude, pois muitas pessoas, ao tentarem furtá-la, não a tocaram e morreram da mesma forma. Entretanto, Norman conseguiu de alguma maneira, talvez pela lenda da meia-noite, que poucos sabem. Isso não explica muito bem como ele continuou tocando nela. Verdade seja dita, fico intrigado e confuso com a forma como a Luz se comporta. Você teria de arriscar. Meu conselho, por mais estúpido que possa parecer, é pedir que Áques o ajude.
— Por garantia, certamente farei. Sempre peço a ajuda de Céus e dos deuses e tenho êxito em minhas missões.
— O que são estas escoriações? — indaga Strória, até então calado.
— Bem, quase sempre tenho êxito — corrige Alexus. — Infelizmente, enquanto vinha para Reilos, deparei com um dragão azul e não consegui matá-lo. Verdade seja dita, estive muito mais perto de morrer.
— O simples fato de ter sobrevivido já é digno de cumprimentos — opina o mago mais jovem, com seu tom sereno e olhar terno.
— Me perdoe por não ter perguntado antes — interfere Ronald. — Deduzi ser ferimentos do duelo com Demetrio. Que cabeça a minha, quanta falta de modos. Com toda essa confusão, te acordei cedo, não deixei tomar café de maneira apropriada e dei pouca importância para tudo pelo que passou. Diga, está doendo muito?
— Só um pouco. Não há motivo para pedir perdão.
— Um jovem cavalheiro — diz o governador.
— É, sim — concorda Strória.
Nífera olha para o mago mais jovem e paralisa por poucos segundos. Quando volta ao presente, avisa que está na hora dele e de seus colegas partirem. Há muito a ser feito e é melhor começar o quanto antes.
— Vou acompanhá-los até a rua — sugere Alexus.
Todos os demais entreolham-se e começam a rir.
— Nós definitivamente não passaríamos despercebidos se ficássemos perambulando pela cidade durante o dia — fala Nífera. — Não será preciso. Nos veremos em breve.
Latifa e Nífera aproximam-se de Strória e repousam suas mãos sobre os ombros dele. De forma mais rápida que o piscar dos olhos, o trio desaparece. Maclau, que nunca havia presenciado o poder de teletransporte, se assusta. Ronald, que já está acostumado, inclusive viajou com eles algumas vezes, acha graça da reação.
— Também fiquei pasmo da primeira vez. Agora vejo e vou com eles com a maior naturalidade. O tempo é o melhor remédio para tudo.
— É, de fato. Antes de partir, gostaria de saber se posso pegar duas mantas e provisões.
— Claro que sim. Leve tudo que for preciso.
Alexus agradece, pega o necessário e vai ao encontro de Fogo, que já aguarda ansioso.

Capítulo 5
Alexus contra Norman


As nuvens encobrem o sol e o vento sopra um ar gélido vindo da Cordilheira das Valquírias, mais ao sul. De tempos em tempos, Alexus pega a pedra-guiadora para conferir se continua na direção correta. Ele e Fogo avançam pelo caminho que leva à cidade costeira de Alamar.
A descoberta de que há magos a serviço da coroa faz o guerreiro questionar quais seriam os outros segredos guardados por Morgan. Enquanto chacoalha no lombo do amigo, recorda o dia que conheceu o rei. Fazia pouco tempo que havia decidido abandonar sua cidade natal, Bradário, e aventurar-se por Anger. Estava passando pelas proximidades de Sifoneia quando avistou um grupo de desordeiros saqueando uma carruagem. Diante da cena, Alexus agiu com rapidez. Apeou de Fogo e pediu para ele se esconder. Aproximou-se com cuidado dos ladrões, que naquele momento berravam com algumas vítimas pedindo ouro. A porta da carruagem foi aberta com força e de dentro saiu um homem muito bem vestido, segurando uma espada imensa. Enfurecido, gritou que teriam de matá-lo, caso contrário não conseguiriam uma moeda sequer. Mal terminou a frase e dois dos saqueadores lançaram-se sobre ele. Com a confusão instaurada, Alexus correu para ajudar. Os movimentos de Maclau eram rápidos e precisos. Logo três ladrões já estavam mortos. O desconhecido a quem estava apoiando matou dois. As outras vítimas também reagiram. Os ladrões restantes, acuados, fugiram.
Após o êxito em repelirem o grupo mais numeroso, Alexus, sem fôlego, pôde finalmente olhar com atenção para a sua volta e percebeu que a comitiva que acompanhava a carruagem tinha trajes reais. Voltou-se para o bravo senhor que lutara com garra e, mesmo que ele estivesse sem a coroa, era perceptível tratar-se do rei. Imediatamente agachou em sinal de respeito.
Morgan IV, com a pulsação acelerada, pediu para o jovem ficar de pé e perguntou seu nome. Impressionado com a agilidade e força do nobre desconhecido, convidou-o para integrar a sua comitiva, queria-o como um de seus guardas. A oferta foi aceita com entusiasmo por Maclau, que passou a morar em uma das casas de empregados construídas na área do Castelo Real.

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Pela indicação do sol, que brevemente aparece, já passa do meio da tarde. Alexus ergue o braço direito para proteger parte do rosto enquanto deduz o horário. Ele e Fogo estão avançando em um ritmo bom, pois já adentraram o Distrito das Valquírias.
A proximidade do oceano é constatada pelo cheiro característico levado continente adentro. Nessa região costeira, as árvores são menores, porém não menos exuberantes. Seus galhos retorcidos entrelaçam-se formando esculturas vivas. O velho Marc Maclau sempre falava que a perfeição era composta de pequenas imperfeições. Isso poderia ser constatado nas relações pessoais, na natureza, em tudo. Alexus sente-se mais leve ao passar por lugares tão bonitos, onde pequenos elementos unem-se de maneira tão harmoniosa.
A dupla avança até o céu ficar cada vez mais escuro e as duas enormes luas ganharem protagonismo, mesmo parcialmente encobertas por nuvens. Pelos cálculos de Maclau, estão a três ou quatro horas de Alamar. Caso Norman realmente localize-se por lá, o melhor é passar a noite onde se encontram e prosseguir pela manhã. O período de descanso também servirá para trocar as ataduras. Por mais que esteja quase restabelecido, o corpo ainda dói um pouco.
— Fogo, meu caro, vamos para a mata.
O animal imediatamente muda de rumo em busca de um local adequado para dormir. Alexus estende uma manta para si e outra para o companheiro. Eles ficam acomodados e comem.
— Estou me sentindo um idiota, Fogo. Tem algo por trás de tudo isso e eu não sei o que é. Vou dormir logo para não ficar irritado. Amanhã a gente acorda bem cedo e tenta arrancar alguma informação.

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Maclau desperta antes do amanhecer. Espreguiça-se e chama Fogo. Eles comem frutas e prepararam-se para partir. Saem no momento em que o azul profundo da noite começa a ser iluminado de longe e são revelados os contornos de inúmeras nuvens.
Enquanto avançam, caem as primeiras gotas de chuva, que logo crescem em quantidade e volume, encharcando os viajantes. A tempestade continua rigorosa por quase duas horas. Cessa quando a dupla já está em uma pequena colina onde é possível avistar Alamar. A cidade é charmosa, com suas casinhas brancas de telhado cinza e janelas azuis, verdes, amarelas e roxas. Seu porto é grande e nele atracam navios vindos de diversos pontos do mundo. Boa parte dos seis mil habitantes vive principalmente da confecção de tecidos e da produção de pigmentos para as mais diversas finalidades. Os fabricantes do local são famosos por conseguirem cores únicas, extraídas da terra e de plantas com características bem peculiares.
O sol surge e é refletido nas poças d’água formadas na estrada. Bem próximo à cidade, Alexus percebe que a pedra não aponta diretamente para ela e sim mais adiante, nas redondezas. Cavalga mais cinco quilômetros sentindo uma característica maresia que o faz recordar as pescarias de infância com os pais. Bradário fica muito perto do oceano, é fácil e rápido chegar à costa. Marc e Dora até construíram um pequeno barco, que era deixado próximo à casa de um amigo ao lado do Phantitry. Alexus sempre gostou de navegar, estar cercado de tanta água límpida e potável, da brisa, da cor azul esverdeada.
O brilho da pedra aumenta de intensidade e aponta para uma casa de dois andares bem cuidada, com janelas amarelas e rodeada por uma plantação de aboborões.
O guerreiro sobe com cautela as escadas, chega à varanda e bate na porta. Logo aparece uma mulher de cabelos grisalhos e sorriso amável, apesar da expressão de cansaço e tristeza.
— Eu me chamo Hector — mente Alexus. — Sou amigo de Norman. Estou de passagem pela região e gostaria de conversar com ele antes de seguir para o reino de Piclos.
— Sou Nara, mãe dele. O Norman está trabalhando na plantação. Siga este pequeno caminho. Ele dá em uma lagoa. É só contorná-la e achará seu amigo.
— Muito obrigado pela informação.
Alexus acha estranho que a pedra-guiadora aponte diretamente para a casa. Contudo, Estendo pode ter deixado o colar em seu quarto antes de sair para trabalhar.
— Me acompanhe, Fogo — pede Maclau.
Eles seguem a trilha e encontram Norman e seu pai, Draco, agachados semeando. O visitante se apresenta com o nome falso e pergunta se pode falar em particular com o amigo.
Sob o olhar apreensivo de seu pai, que percebe algo de errado, Norman pede para ser deixado a sós com Hector.
— Preciso trabalhar, meu filho. Certamente não há nada que vocês queiram falar que um velho caduco feito eu não possa escutar.
— Nos deixe a sós, pai, por favor. É rápido.
Contrariado, Draco apanha seu saco de sementes e ruma para casa. Alexus acompanha quieto a partida. Parecem boas pessoas, não merecem destino tão trágico.
— Sou Alexus Maclau. Aconteceram alguns fatos desagradáveis e sou o responsável por levar a Esfera da Luz para seu local de origem.
Norman calcula a distância para a sua espada, que repousa ao lado da bolsa de pertences, no chão. Dá um salto em sua direção e a agarra. Maclau desembainha a sua e fica em posição de combate.
Estendo joga-se contra o oponente, que consegue defender-se do golpe. Alexus contra-ataca, igualmente sem resultado. Ambos dão um passo para trás e encaram-se avaliando a situação. Norman respira fundo e avança com rapidez, dá dois golpes consecutivos que são bloqueados. O inimigo aproveita a momentânea abertura dada para desferir um golpe no braço esquerdo de Norman, que, irritado, afasta-se para retomar o equilíbrio. Focado, agarra a espada com toda a força possível e ataca Alexus, que tem sua arma jogada no chão ao tentar defender-se de tão poderosa ofensiva.
Norman está diante da oportunidade perfeita para acabar com a luta, mas hesita. Apesar de toda a amargura, não consegue tirar a vida de alguém com facilidade. Maclau aproveita para dar um soco no rosto do oponente, derrubando-o. Chuta a espada de Estendo para longe e agacha sobre seu peito, pressionando seus braços com os joelhos.
— Não quero que você tenha o mesmo destino do seu irmão. Apenas me dê a Luz e partirei sem nunca mais incomodá-los.
— Ela já está no seu local de origem — esbraveja Norman. — Queria coragem suficiente para matar você.
— A Esfera da Luz não está em Reilos.
— Há duas noites, quando soube que Demetrio nunca mais retornaria, a devolvi para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Joguei-a no Lyon, onde ela enfim poderá repousar em paz.
Alexus percebe a verdade nos olhos de Norman, que ardem em fúria. Bota a mão no bolso e retira a pedra-guiadora. Coloca-a sobre o peito do inimigo e fica de pé.
— Por que vocês fizeram isso?
— Pergunte ao rei — limita-se a responder Estendo.
Por mais que esteja curioso, Alexus apenas dá as costas e monta em Fogo. O cavalo segue pelo meio da plantação e desaparece.
Norman joga a pedra esverdeada para o lado, pega seus pertences e vai para casa. Os pais aguardam na porta, aflitos. Nara chora e corre em direção ao filho ao perceber que ele está machucado.
— Quem era ele?
— Alexus.
— O mesmo que matou meu filho?
Desolado, Norman responde com o olhar. A mãe abraça-o. Mais calma, leva o jovem até a sala, onde lava o ferimento e coloca extrato de babosa nele.
— Vá para o seu quarto descansar, filho — pede Draco. — Ao menos podemos colocar um ponto final neste assunto. Já basta um filho morto, não podemos perder outro.
Norman limita-se a pedir licença e sobe. Espera que os pais o perdoem algum dia, mas precisa e irá vingar a morte de Demetrio.

Capítulo 6
Caruel e Han

Lírius43, 4056.

Alexus e Fogo aproximam-se do Centro de Administração Distrital. Maskáfer, Reilos, Drilírio, Sifoneia e Forte Sul têm centros distritais onde atua, além do prefeito da cidade, um governador subordinado diretamente ao rei. Mesmer, Norten, Alamar, Gargol, Porto, Ertold e Bradário têm Centros de Administração Local, apenas com prefeitos, que respondem às capitais distritais.
Anger foi precursor no mundo na construção de um modelo governamental, sendo copiado e adaptado por outros reinos. As inovações não se restringem ao cunho político, estão presentes também nas áreas científica e cultural. Reilos é considerada a capital cultural de Phanticéus, berço das artes cênicas e do culto à memória. Drilírio é chamada de terra do conhecimento, pois há quase uma dezena de laboratórios de pesquisa de onde já saíram criações muito populares, como o pergaminho extremamente resistente utilizado pela maioria dos phanticeusianos e a luneta astronômica. Sua fama só não é maior do que a de Vitória, a capital élfica, e Córdona, capital dos magos.
Após ser informado pelo recepcionista do Centro Distrital onde o governador está, Alexus dirige-se até o escritório. Ronald saiu há pouco de uma demorada reunião e analisa uma pilha de documentos. Ao notar a presença do guerreiro, vai às pressas ao seu encontro.
— Alexus, meu caro, já está de volta. Vejo pelo seu semblante que nem tudo saiu como o esperado. Sente aqui na cadeira, por favor. Quer um chá? Tem de várias ervas diferentes.
— Não precisa, muito obrigado.
— Conte-me tudo, não esconda detalhe algum. O que lhe deixou com este rosto tão tristonho?
— Duelei com Norman, mas descobri que ele não está mais com a Esfera da Luz. Jogou-a no imenso Lyon quando soube que o irmão não o encontraria mais.
— Você o matou?
— Não.
— Certo. Nosso próximo passo é elaborar um plano.
— Gostaria de ir procurar a Luz agora mesmo. Contudo, como poderei ter êxito numa procura em espaço tão grande?
— Não fique agoniado — fala Ronald num tom quase direcionado para uma criança. — Tenho a solução perfeita para isso: três magos. Eles estão em uma missão no sul do reino agora. Certamente vão voltar o mais tardar amanhã. Você pode me aguardar um pouco aqui?
— Posso.
— Estou quase terminando minhas tarefas de hoje e podemos ir até a minha casa. À noite será encenado Caruel e Han, um espetáculo muito elogiado. Aposto que você ainda não conhece o magnífico Teatro das Águas. Vamos juntos para espairecer um pouco antes que você dê continuidade para a missão. O que acha?
Alexus aceita de bom grado o convite.
— Ótimo, fico feliz que tenha gostado da ideia. Estou tão curioso para assistir. As pessoas falam tão bem. É até uma lástima eu não ter ido antes. Ao menos terei uma boa companhia. Diga, você costuma ir ao teatro em Maskáfer?
— Fui poucas vezes.
— Não me diga isso, precisa ir mais. O teatro é encantador. Nós podemos viajar para tantos lugares sem sair de dentro dele. É uma verdadeira maravilha. Tempo para isso se arruma. Estou até pensando em fazer apresentações especiais durante manhãs e tardes para as crianças criarem o hábito de ir ao teatro. Crescerem mais inclinadas a aproveitar todas as maravilhas da cultura.
Ronald e Alexus caminham pelas ruas de Reilos. A conversa é constantemente interrompida pelos moradores, que cumprimentam o governador. Este é afável com quem o aborda, faz uma ou outra pergunta e deseja um ótimo dia.
Ao chegarem à residência, Alexus acompanha Fogo até o estábulo. Como de costume, recosta a cabeça em sua barriga e descansa um pouco enquanto conversa com o amigo. Verifica se não faltará água ou comida e dá um abraço de despedida. Vai para o quarto onde está alojado para se banhar. Ao descer para a sala, o governador já o aguarda. Como a peça tem início em breve, devem sair logo.
O Teatro das Águas é rodeado por fontes. Até mesmo em seu saguão jorra água de uma grande estátua de duas humanas que parecem dançar insinuando-se uma para a outra. No interior, quatrocentos confortáveis lugares estão ajustados para que todos tenham visão privilegiada do palco.
Ao entrar, Alexus recebe um pedaço de pergaminho no qual consta a ficha técnica e a sinopse da peça teatral. No enredo, dois jovens homens apaixonados não podem ficar juntos porque suas famílias se odeiam. Mesmo que seja arriscado, eles não conseguem deixar de viver tão belo amor. Contudo, isso trará consequências drásticas.
— Venha aqui, Alexus. Vai começar — chama Ronald, ansioso.
Durante quase duas horas, o público assiste atento. Após o fim, com a morte dos protagonistas, os presentes aplaudem de pé, alguns soluçando de tanto chorar.
A multidão deixa o local comentando suas cenas favoritas. Famintos, Alexus e Ronald voltam para a casa deste e vão direto para a cozinha. Empanturram-se sem cerimônia alguma e, após saciados, vão para a sala beber seiva de cárcaras.
— Estou intrigado com algo — balbucia Alexus, depois de encher seu copo pela segunda vez. — Se Nífera não pode interferir diretamente, como ele entregou a pedra-guiadora? Se ele pode fazer isso, por que não tomou iniciativa melhor?
— É um pouco complicado. Verdade seja dita, ele pode interferir como bem entender. No entanto, a visão, a exata visão que ele tem, vai se concretizar de qualquer forma. Em outras ocasiões, ele tentou modificar suas previsões, sempre sem sucesso. Alguém até mesmo já morreu por causa disso. Ele se sente muito culpado. Mesmo se colocasse um batalhão na praça para evitar o sumiço da Esfera da Luz, ocorreria de qualquer forma. Nífera aprendeu com o tempo que interferências mais sutis como a pedra-guiadora mostram-se mais eficazes. Nós não planejávamos pedir ajuda, por isso demoramos um pouco para enviar a carta.
— Enviaram porque a pedra não estava funcionando?
— Exatamente.
Os dois continuam conversando até esvaziar o jarro de seiva.
— Um brinde aos nossos problemas — brinca Alexus.

Capítulo 7
A façanha no Lyon

Lírius44, 4056.

Após chover a manhã toda, o sol afugenta as nuvens e ganha seu protagonismo no céu. Alexus aproveita que o tempo melhorou e sai para se exercitar. Corre dez quilômetros e para na margem do Lyon, onde treina chutes e socos. Por mais que esteja com preguiça, sabe que heróis surgem da determinação e do esforço contínuo.
Enquanto executa as sequências que aprendera na adolescência e repete desde então, um esquilo aproxima-se. Maclau não dá muita importância para o pequenino e continua. Faz uma série de dez chutes frontais, o último deles elevando a ponta do pé na altura da sua cabeça.
— Sua flexibilidade é muito boa — fala o esquilo, com uma voz parecida com a de uma criança humana.
O guerreiro leva um susto e chega a perder o equilíbrio. Nunca soubera de algum animal de raciocínio inferior que conseguisse falar a Língua Comum. Por mais que a grande maioria, principalmente os menos selvagens, compreenda quase tudo, ela não tem capacidade suficiente para reproduzir os sons da mesma forma.
— Você parece surpreso — zomba o pequenino. — Me chamo Digou. Gostaria de apertar a sua mão, mas acho muito difícil.
— Como isso é possível? — indaga Alexus, que agacha ao lado do desconhecido.
— Queria explicar com calma, até mesmo porque gosto de conversar. O problema é que o Latifa pediu para eu ser rápido. Posso falar no caminho?
— Caminho para onde?
— Para a casa dos magos. Você me dá uma carona?
— Carona?
— Sim, no seu ombro.
Maclau faz sinal para Digou subir nele e fica de pé.
— Desculpa pedir para ir no ombro. Não sou preguiçoso. Acontece que não gosto de andar entre os humanos. Tenho medo de que alguém distraído pise em mim. Como bem pode perceber, sou pequenino perto de vocês.
— Não tem problema algum, só preciso que você me indique para onde seguir.
— Siga reto aqui. Darei as coordenadas.
— E como você consegue se expressar tão bem assim?
— Latifa criou uma poção chamada de Super-racionalidade. Faz mais ou menos dois anos. Ele já tentava há tempos, sem sucesso. Quando deu certo, chegou a gritar de alívio e disse que nunca mais faria de novo, de tão esgotado que estava. Foi preciso uma boa dose de sangue dele, além de ingredientes difíceis de achar. Latifa quase adoeceu para dar certo. Dobre para a esquerda aqui.
Maclau acha Digou encantador. A voz fina e a fluidez fazem do animal uma figura engraçada. Após passarem pela Rua das Abelhas, a dupla chega ao beco onde está a casa dos magos. Três batidas são dadas na porta, que logo é aberta por Latifa.
— Vejo que nossos dois bravos guerreiros se encontraram.
Contente, Digou salta para o ombro do amigo.
— Entre, Alexus — convida o mago.
Eles acomodam-se na sala, onde também está Strória.
— Nífera não está aqui? — pergunta Alexus.
— Ele está em Ertold. Vamos buscá-lo ao entardecer — esclarece Strória, que emenda: — Ronald nos contou o que aconteceu com Norman.
— As suspeitas de vocês estavam corretas. Ele já havia se livrado da relíquia.
— Faz muito sentido. A Luz interferia na mágica do amuleto que dei para ele. Somente após jogá-la fora que este voltou a funcionar — reflete Latifa.
— E agora?
— Amanhã, após raiar o dia, iremos ao seu encontro na casa do governador e podemos partir. Não esqueça de preparar o seu cavalo e conseguir duas barracas.
— Não se preocupe, arrumarei tudo. Só tenho duas perguntas.
— Fale.
— Strória não pode nos levar e trazer todos os dias com o seu poder? E precisaremos de um barco para procurar a relíquia, certo?
— Receio te desapontar — Strória toma a palavra —, mas meu poder é um pouco mais complexo que parece. Só posso me transportar instantaneamente para locais que já conheço bem, ambientes claros em minha mente. Assim sendo, não posso levar vocês amanhã, pois não conheço o destino, nem poderemos voltar durante a noite, pois mudaremos diariamente os pontos de procura. Mas não fique triste, quanto à segunda questão, não há com o que se preocupar. Nós não precisaremos de nenhum barco.

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Lírius45, 4056.

Digou e Ronald acenam enquanto Alexus e os três magos partem a cavalo. O grupo deixa os limites da cidade e prossegue costeando a margem do lago. Fogo esforça-se para não ficar para trás, pois carrega o material mais pesado.
Após duas horas, acham uma cabana abandonada e param para conferir se ela foi ocupada há pouco tempo. Apesar de não ter nada que sinalize a passagem dos irmãos Estendo, é visível que alguém esteve ali recentemente.
— Vamos descarregar o material, ao menos hoje à noite teremos um lugar decente para dormir — fala Latifa. — Além do mais, podemos iniciar as buscas nesta região.
Eles levam seus pertences até a cabana e preparam-se para dar seguimento à missão. Latifa tira de sua bolsa um vidro de tamanho um pouco maior do que sua mão, com uma poção esverdeada.
— O que é isso? — indaga Alexus.
— Esta fórmula indicará quando estivermos próximos à Luz.
— E como ela funciona?
— Nem mesmo eu sei muito bem, mas alguém precisa tomá-la.
— Não vou beber essa gororoba — ri Nífera.
— Eu a criei, já fiz minha parte — argumenta Latifa.
— Parece que será um de nós — fala Strória, voltando-se para Maclau.
— Posso fazer isso — afirma o humano.
— Também posso. Para ser uma decisão justa, sugiro tirarmos no graveto.
— Está bem.
Strória recolhe um galho seco do chão e parte em dois pedaços pequenos, com diferentes tamanhos. Fica de costas, envolve-os com a mão de forma que não se perceba suas proporções e vira-se.
— Toma a poção quem ficar com o menor.
Alexus aproxima-se dele e olha para os gravetos. Não há como perceber qual é o correto. Encosta sua mão em Strória, que tem a pele muito macia e quente. Automaticamente seus olhos vão um de encontro ao outro, num misto de nervosismo, mistério e surpresa. Encabulado, Maclau puxa o primeiro pedaço que tateia, sem olhar para ele.
— Abra sua mão, Strória — interfere Nífera —, vamos ver quem perdeu.
O pedido faz com que os dois concorrentes afastem-se e finalmente olhem para os gravetos.
— Ganhei — sussurra o mago.
— Toma seu prêmio de consolação — fala Latifa, que joga o frasco para Maclau. — Bastam dois goles para cada dia de procura.
O guerreiro fica nauseado apenas com o cheiro exalado após tirar a rolha.
— Isso pode me matar?
— Teoricamente, não.
Nífera ri da situação. Alexus, sem vontade alguma, bebe o líquido de gosto horrível. Nunca havia ingerido algo tão amargo. Ao terminar, começa a tossir e quase vomita. Sua expressão horrorosa acaba sendo cômica. Os magos não se seguram e caem na gargalhada.
— É tão ruim assim? — questiona Latifa.
— Parece que ingeri minha própria morte — fala Alexus, que acaba rindo também.
— Fique calmo, aposto que amanhã você já estará mais acostumado.
— Obrigado por me lembrar que terei de consumir isso novamente.
— Disponha — brinca Latifa. — Vamos iniciar a busca?
Todos concordam. Os quatro caminham até a margem do lago. Maclau ainda não sabe como vão procurar a relíquia sem embarcação ou qualquer outro meio. Está prestes a perguntar como dar continuidade quando Strória dá alguns passos e quase toca a água.
O jovem mago respira fundo e movimenta seus braços como se estivesse dançando. A ação suave e ritmada é seguida aos poucos pelo Lyon. A água na sua frente repete a cadência, que aumenta de intensidade. Paredes líquidas colidem umas nas outras, há uma fúria interior cercada pela mais completa harmonia. Enquanto isso, Strória leva suas mãos uma ao encontro da outra e ergue os braços o mais alto possível. Uma enorme quantidade de água eleva-se em atividade semelhante. Com movimento firme, o mago desloca seus braços para sentidos opostos, abrindo uma estreita faixa de terra no meio do lago. Seus olhos se fecham, é possível perceber o quanto está fazendo força. O caminho fica cada vez mais largo e distante.
— Strória também possui o dom de manipular a água — diz Nífera para Alexus, que está surpreso. Levando em conta a carga de informações que ele recebeu nos últimos dias, nem deveria se espantar tão facilmente. No entanto, é fascinante acompanhar tal cena. É raro para qualquer mago ter mais de um dom ou, mais difícil ainda, manipular qualquer um dos elementos naturais dessa forma.
— Vocês já podem entrar — avisa Strória, concentrado.
Maclau avança maravilhado, pois consegue avistar muitos animais aquáticos do outro lado das paredes. O chão em que pisam é escorregadio e nele passam alguns caranguejos-aranha, monstrengos de meio metro com seis patas, duas pinças, carapaça coberta por pelos, que conseguem respirar dentro e fora d’água e são, ao menos esses, muito curiosos. Há corais de um sem número de tonalidades e formações rochosas pequenas e muito bonitas. Para Alexus, a sensação é de estar pisando na superfície de outro planeta.
Enquanto os quatro avançam, o caminho se fecha atrás, deixando-os cercados por água por todos os lados. Eles caminham durante cerca de uma hora, sem Alexus sentir absolutamente nada. Strória avisa estar fraco e dão meia volta.
— Fazia muito tempo que não usava meu dom para algo tão demorado e grandioso — explica o mago, já sentado na areia da margem do Lyon. — Acho melhor pararmos por hoje. Amanhã, provavelmente conseguirei aguentar mais tempo.
Os outros concordam e o grupo dirige-se à cabana. Faminto, Strória corre até uma das bolsas e parte um pedaço de pão para si. Usar seu poder por tanto tempo deixou-o esgotado.
— Foi incrível o que você fez — exclama Alexus, que se senta ao lado e pega um pequeno pedaço de pão.
— Estou treinando bastante para expandir mais e mais meu dom. Comecei conseguindo mover apenas a água de um pequeno recipiente. Gostaria muito de ser forte o suficiente para fazer flutuar toda a água de um lago imenso como o Lyon.
Alexus escuta Strória com atenção. Há uma doçura em sua voz misturada com certa gravidade emitida em pequenas falhas. É como se ele estivesse com medo de libertar toda a sua força, cada vez mais perceptível e sedutora.
— Você pode colher algumas frutas para o jantar, Alexus? — interrompe Nífera.
— Já vou.
O humano deixa o local e caminha pela mata. Apesar de haver alimento em abundância, demora além do necessário para ter tempo de espairecer. Como será que estão as coisas em Maskáfer, pergunta-se.
Quando retorna, Latifa está ao lado da lareira, com o fogo pronto. Nífera e Strória preparam alguns vegetais. O jantar é servido e, após todos estarem saciados, a sobra é dada para os cavalos, que já haviam comido pelas redondezas. O grupo espalha-se pelo cômodo e logo todos adormecem.

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Alexus passeia pela beira do oceano quando é acordado pelos magos. O som das ondas em seus sonhos é trocado pela chuva intensa que cai desde a madrugada. Eles alimentam-se e aguardam o clima melhorar. Três horas depois, já impacientes, resolvem avançar para o próximo ponto da mesma forma.
Os cavalos, até então refugiados embaixo das árvores maiores, vão ao encontro dos seus donos. Os pertences são carregados e o grupo segue viagem. Não demora para todos ficarem encharcados. Meia hora depois, já estão longe o suficiente para efetuar nova procura.
— É melhor não montarmos as barracas ainda — opina Nífera.
— Vamos agrupar as mochilas aqui — fala Alexus, indicando uma abertura em uma imensa árvore onde está relativamente seco.
O grupo larga as coisas no local e diz para os cavalos fazerem o que bem entender, apenas pede para não irem muito longe. Logo os três magos e Maclau seguem até o Lyon para iniciar nova busca.
Com calma, Strória repete os movimentos com as mãos e uma fresta é aberta no imenso lago. Ele entra tomando cuidado para não cair. Esta parte do terreno é mais acidentada que aquela do dia anterior. Os demais o seguem com os olhos atentos para tudo que os cercam. Descansado, Strória consegue avançar mais. Entram oito quilômetros até ele anunciar que é preciso retornar.
— Nada acontece comigo. Essa poção por acaso tem prazo para deixar de fazer efeito? — questiona Alexus.
— Não tem prazo — responde Latifa. — Se nada acontece, é porque não estamos perto da relíquia.
Prestes a saírem do lago, para de chover. Contentes, decidem seguir para o próximo ponto, pois assim ganharão tempo no dia seguinte. Uma hora depois, já montam as duas barracas ao lado de um dos afluentes que deságuam no Lyon.
Tudo ainda está muito molhado e nem tentam fazer uma fogueira. Por sorte, as nuvens já se afastaram e as imensas luas brilham com força. A claridade é suficiente para que possam conversar e jantar com tranquilidade.
— Se não chover amanhã, podemos fazer duas buscas — ressalta Nífera, sentado sobre um tronco caído, ao lado dos demais, comendo maçãs amargas.
— Você acha que aguenta? — indaga Latifa para Strória.
— Consigo.
Nífera e Latifa concluem a refeição e retiram-se para dormir. Alexus, ainda sem sono, serve mais comida e mastiga com calma.
— O que você sente quando domina a água?
— Sinto todo o líquido que corre pelo meu corpo — responde Strória. — Acompanho o movimentar do meu próprio sangue e ele representa tudo aquilo que quero manipular. É uma experiência assustadoramente intensa e fascinante.
— E há quanto tempo você é amigo de Nífera e Latifa?
— Nós crescemos juntos. Eles são a minha família, mesmo que não tenhamos o mesmo sangue correndo nas veias.
— Família é amor, não laços consanguíneos.
— Exatamente. É amor.

-X-

Os pássaros cantam alegres quando Alexus sai da barraca. O guerreiro aproveita que os magos dormem e vai até o riacho se banhar. A água, vinda diretamente da Cordilheira dos Azuis, é bem gelada, mesmo que já tenha percorrido um sinuoso caminho até poder desaguar no lago que está logo em frente. Tremendo de frio, Maclau sai o mais rápido possível, espera ficar seco e coloca a roupa para se aquecer.
No caminho de volta, encontra muitas árvores frutíferas carregadas. Apanha maçãs alaranjadas e tomatos bem maduros. Ao chegar de volta ao acampamento, seus companheiros de viagem aguardam sentados na grama. Eles comem, desmontam as barracas e seguem para o Lyon. Procuram a Luz durante a manhã toda, sem sucesso. Avançam mais dois quilômetros pela margem e ficam até o fim da tarde vasculhando as profundezas do lago.
Esgotado, Strória quase desmaia após saírem. Todos concordam em dormir ali mesmo. Enquanto o mais jovem entre os magos repousa, os demais organizam tudo.
Alexus acende a fogueira. O grupo reúne-se em volta do fogo para comer e ficar aquecido. Como na noite anterior, Nífera e Latifa logo se retiram. Alexus e Strória demoram-se mais um pouco e conversam sobre suas missões.
— Caso não esteja enganado — conta o humano —, era a minha segunda tarefa oficial para o rei. Eu havia acabado de me mudar para Maskáfer e, mesmo que não demonstrasse, estava meio perdido, deslocado. Meu trabalho naquele dia consistia em ajudar um comerciante a levar uma pequena mesa até a sua casa. Achei aquilo bem estranho, mas não falei nada. No meio do caminho, descobri por que queriam um guarda ajudando. Tropecei, caí sobre a mesa e quebrei ela no meio. Voou ouro para todos os lados, para o desespero do homem que me acompanhava. Ele gritava no meu ouvido para recolher tudo o quanto antes. Quanto mais ele berrava, mais atrapalhado eu ficava. Se você visse o rosto de pavor dele, parecia que ia ter um ataque fulminante ali mesmo, no meio da rua.
Strória sorri e fala sobre um caso no qual também foi desastrado. Um assunto leva ao outro e por mais que ambos não tenham sono, decidem recolher-se, pois já está ficando tarde.
Deitado em sua barraca, Alexus reflete. Pensa em Dora, sua mãe. Faz quase um ano desde a última vez que a visitara. Talvez devesse pedir permissão ao rei para ir a Bradário após recuperar a Esfera da Luz. Poderia levar Mia consigo. Seria uma loucura, todavia talvez Morgan consinta.
Enquanto pondera o que fazer, Maclau escuta um barulho próximo. Pega sua espada e fica alerta para qualquer nova movimentação. Ouve outro ruído, agora mais próximo. Alguém agacha-se em frente à sua barraca e entra.
— Calma, sou eu — diz Strória, após ser recepcionado com uma espada apontada em sua direção.
O humano larga a arma no canto, aliviado.
— Não consigo dormir — confessa o mago.
— Eu também não.
Eles ficam sentados um em frente ao outro. Strória aproxima-se aos poucos. Sem reação, Alexus permite o contato de suas mãos. O mago avança mais e beija o humano, que corresponde em um primeiro momento.
— Não posso, me desculpa — sussurra Alexus, que se afasta após alguns segundos, arrependido. — Eu não posso.
Envergonhado, Strória sai correndo da barraca. Maclau fica um bom tempo imóvel, confuso.

-X-

Lírius48, 4056.

Mia corre pelo campo de flores, linda e radiante como sempre. Alexus vira para o outro lado e depara com Strória, igualmente belo e sedutor. O sonho do humano é invadido por duas vozes que gritam seu nome.
— Acorde, você está atrasado — avisa Nífera, ao lado de Latifa.
O guerreiro dá um salto e pede desculpas por perder a hora. Ao sair da barraca, avista Strória comendo.
— Bom dia — fala Alexus, encabulado.
Igualmente sem jeito, o mago cumprimenta-o e oferece uma maçã alaranjada.
— Vocês dois ficam de conversa até tarde e dá nisso — exclama Latifa, que os fita.
— Vamos terminar de arrumar as coisas e partir para o próximo ponto — diz Nífera. — O dia está perfeito para novas buscas.
Strória e Alexus têm vergonha de se olhar. Engolem rapidamente a comida e ajudam a desmontar o acampamento. Sabem que mais cedo ou mais tarde terão de enfrentar a verdade, entretanto não precisa ser agora. Ainda processam o misto de sentimentos e ações desencadeados.
O grupo avança mais um pouco, larga seus pertences e entra no Lyon. Os magos e o humano seguem com calma por causa das deformidades do terreno. Às vezes, pegam um ou outro peixe pelo caminho e colocam na água, temem que eles possam morrer por ficarem muito tempo expostos no círculo de proteção.
Alexus sente uma pontada de incômodo com a situação, contudo procura não demonstrar. Está nervoso e quente.
— Você está bem? — indaga Nífera, mais próximo a ele.
— Não sei. Estou com calafrios.
A cada passo, Maclau sente a temperatura do corpo se elevar. A situação piora: suas pernas ficam bambas e a cabeça lateja, parece que explodirá.
— Meu corpo todo dói.
Imediatamente se agacha.
— A poção surtiu efeito, estamos próximos — grita Latifa.
Strória fica imóvel e aguarda coordenadas de para onde seguir. Enquanto isso, Alexus demonstra estar ainda pior. Nífera e Latifa tentam acalmá-lo quando escutam um som horripilante ecoar da água. Todos voltam sua atenção para o lado do qual emana o pavoroso ruído. Uma imensa mancha escura ganha forma e aproxima-se rapidamente. Maclau solta um berro de dor e desmaia, deixando os magos aflitos.
— Estou perdendo minha concentração — grita Strória.
— Venha para mais perto da gente — pede Nífera.
Enquanto Strória se movimenta, uma serpente de trinta metros de comprimento dá voltas em torno do círculo de proteção. Latifa e Nífera erguem Alexus pelos braços e vão em direção ao mago mais jovem.
A serpente fura o paredão d’água e cai na terra firme. Em volta de sua cabeça há pequenos e nojentos tentáculos. Sua pele escamada reflete diferentes tonalidades à medida que se movimenta. Possui cinco pares de patas com enormes garras e seis nadadeiras. O monstro inicia um movimento de ataque aos pequenos seres à sua frente.
— Por Céus — exclama Nífera. — Latifa, carregue Alexus até Strória. Vou distrair essa coisa enquanto isso.
Latifa continua levando o humano sozinho. Nífera, preocupado, corre o quanto é possível em lugar tão acidentado e escorregadio. Procura ficar o mais longe possível dos seus companheiros de busca. Grita para chamar a atenção da serpente, com sucesso.
O animal movimenta-se até o mago que está sozinho. Solta grunhidos pavorosos que lembram uma fera sendo abatida. Prestes a abocanhar sua presa, Nífera rola para dentro de uma pequena fenda e escapa por um triz.
Enfurecida, a serpente volta-se para os demais. Latifa senta Alexus apoiado em Strória e pensa no que fazer. O horripilante ser aproxima-se e não há tempo a perder. Latifa desembainha a espada de Maclau, segura-a com força e corre na direção do inimigo.
— Volte aqui — grita Strória, em vão.
Prestes a colidir, Latifa aponta a espada para a boca do animal e protege-se atrás de uma pedra. Para sua sorte, a serpente não consegue desviar do ataque e a lâmina abre um rasgo que avança quase um metro na carne muito firme. Enquanto o monstro sangra um veneno de cor púrpura e se debate, Nífera e Latifa vão ao encontro de Strória.
— Não há chance alguma de recuperarmos a Luz — opina Nífera. — Vamos embora.
Todos concordam. Latifa e Nífera repousam suas mãos sobre o ombro de Strória, que toca no braço de Alexus. A última visão do grupo no local é a imensa serpente avançando para um novo ataque, que desta vez será repelido apenas pelos paredões de água a desmoronar furiosamente.

Capítulo 8
Carmen

Norman entrega algumas moedas de prata ao dono da estalagem onde passou a noite e se retira. Do lado de fora, na avenida principal de Mesmer, monta em Galapos, seu cavalo. Descansados e bem alimentados, seguem viagem para Maskáfer.
A temperatura está agradável, apesar do vento constante. A estrada de chão batido entre as duas cidades é bem conservada e permite que a dupla percorra-a com agilidade. Há uma intensa circulação de viajantes a pé, a cavalo, muitos comerciantes carregando quinquilharias em suas carroças.
Antes de partir de Alamar, Norman deixou um bilhete para os seus pais pedindo perdão por desrespeitar o pedido deles de esquecer tudo o que aconteceu. Por mais que tente, é impossível ignorar o sofrimento causado a seu irmão. Norman confia que ocorrerá o que for melhor para ele, sua família, o reino.
— Que Céus guie meu caminho — suspira Estendo ao avistar a capital.
Enquanto percorre as ruas largas de Maskáfer, lembra da primeira viagem que fez até lá, há sete anos. Na ocasião, acompanhou Demetrio, que já sabia a identidade do seu pai biológico. Logo após entrarem à cidade, foram na primeira taverna que avistaram para beber algo. No local, conheceram Lúcius, um alfaiate de meia idade e bom humor. No decorrer da conversa, acabaram falando o porquê de estarem na capital, sem mencionar o nome de quem procuravam. Lúcius, que ganhou simpatia por eles, desejou boa sorte e disse ter de partir para o trabalho. Impaciente, Demetrio logo pediu para seguirem também, pois já estava preparado. Enquanto caminhavam na rua, Demetrio agradeceu por tudo e disse que, independentemente do que ocorresse, Norman sempre seria seu irmão e Nara e Draco, seus pais.
Norman lembra muito bem do longo abraço que deu no irmão para acalmá-lo. Logo após, entraram no Castelo Real e disseram que gostariam de falar com o rei.
— Ele está ajustando suas roupas novas — informou o guarda. — Se for rápido e vocês puderem aguardar um pouco, vejo se dispõe de tempo livre após isso.
— Não tomaremos muito do tempo dele — disse Demetrio. — Viemos de Alamar apenas para isso. Se ele puder nos receber, ficaremos gratos.
O guarda saiu e logo voltou com a informação de que os visitantes poderiam prosseguir. Conduziu-os até o escritório onde Morgan estava. Demetrio e Norman levaram um susto ao entrar no cômodo e depararem com Lúcius. Este ficou igualmente desconcertado, avisou já ter todas as medidas necessárias e pediu permissão para se retirar.
Ao tomar coragem e começar a contar a história de sua mãe biológica, Carmen, Demetrio percebeu o olhar nada feliz do rei. Carmen trabalhara no castelo e apaixonou-se por Morgan IV, à época príncipe, que já estava comprometido com a princesa do reino humano de Clanger. Eles encontravam-se todos os dias e o príncipe queria desfazer seu compromisso matrimonial, algo inconcebível para Morgan III. Ciente da gravidez de Carmen, o então rei mandou afastarem-na da capital e a matarem. A jovem conseguiu fugir antes disso e refugiou-se em Alamar, onde hospedou-se na residência do casal Estendo. Durante a gestação, foi bem cuidada pelos amigos, que mantinham sua presença ali em sigilo. Ao dar à luz, Carmen teve muitas complicações e faleceu poucos dias após o nascimento de Demetrio. Temerosos de que pudesse acontecer algo de ruim com o bebê, Draco e Nara adotaram-no.
— Basta — gritou o rei, impaciente. — Não posso perder meu tempo escutando uma história mentirosa, sem sentido algum. Saiam daqui, por favor.
— Meus pais nunca mentiriam para mim — insistiu Demetrio.
Morgan desviou seu olhar dos dois visitantes e ficou imóvel durante alguns segundos. O silêncio na sala enfim foi quebrado quando iniciou movimento de partida. Passou pelos irmãos Estendo ignorando-os.
— Nunca mais voltem aqui — balbuciou da porta — ou repitam essa bobagem.
Envergonhado, Demetrio saiu do castelo quieto, não conseguia acreditar que pudesse ser filho de alguém tão desumano. Já na rua, Norman tentava consolá-lo quando Lúcius se aproximou.
— Me desculpem, mas eu acabei escutando boa parte da conversa — confessou o alfaiate.
— Um dia vou provar que não preciso ser filho de rei algum para ser grandioso — vociferou Demetrio.
Sete anos depois, cruzando nas proximidades do Castelo Real, Norman recorda nitidamente a expressão de desilusão no rosto de Demetrio ao ser ignorado pelo pai biológico. Cavalga em direção ao norte, em uma área mais residencial da cidade, e chega em frente a uma bonita casa de dois andares cercada por um jardim com flores de diferentes espécies. Desce de Galapos e dirige-se à porta. Bate algumas vezes, com força.
— Entre, por favor — convida Lúcius. — Estava lendo no quintal, por isso demorei um pouco.
O anfitrião dá um abraço apertado em seu amigo e convida-o para se sentar. A sala é grande e decorada com muitas pinturas – tanto abstratas quanto de familiares.
— Como está sendo? — pergunta o alfaiate, que já perdeu parentes próximos e sabe que o vazio deixado é insubstituível.
— Difícil — confessa Norman, cabisbaixo —, mas nós sabíamos dos riscos que corríamos e de alguma forma eu estava preparado para o que viesse a acontecer.
O visitante olha na direção da janela com os olhos marejados.
— Ele só queria mostrar o seu valor. Durante anos buscou alguma forma de dizer que era bom o suficiente. Ao ler um texto antigo que dizia que a Esfera da Luz fundida a outro artefato mágico criado pelos seres superiores daria poderes inimagináveis a quem a possuísse, viu a oportunidade perfeita. Ele não buscava vingança, apenas reconhecimento.
— E você busca o quê? — Lúcius consegue sentir o rancor na voz de seu amigo, que está obstinado a preencher de alguma forma o vazio deixado.
— Hoje, quero vingança — exclama Estendo, sem hesitar. — Demetrio não merecia o fim que teve, como se fosse um mero ladrão abatido pelo digníssimo rei. Preciso encarar Morgan frente a frente.
— Isso é muito perigoso. Eles redobraram a segurança do castelo e hoje em dia não é mais tão fácil conversar pessoalmente com o rei. Além do mais, me chamaram para falar sobre o uniforme vestido por Demetrio. Queriam saber como ele havia conseguido. Disse não fazer a mínima ideia, haver inúmeras hipóteses. Talvez ele tenha pegado no lixo, furtado de um antigo guarda. Por sorte, acreditaram na minha mentira. Todavia, não acreditarão uma segunda vez.
— Se é tão difícil entrar, eu aguardo ele sair. Posso esperar a oportunidade perfeita, sei que logo ela aparecerá. Apenas peço, caso não seja muito incômodo ou perigoso, para ficar hospedado aqui enquanto isso.
— Não há problema algum em você ficar comigo — fala Lúcius, após um suspiro de temor. O plano do alfaiate é conseguir persuadir Norman a desistir de buscar vingança nesse meio tempo. — Vou preparar um chá para nós. Aproveite para colocar seus pertences no quarto de visitas e levar Galapos para o quintal.
— Muito obrigado por tudo — agradece Norman. Agora, resta a ele esperar.

Capítulo 9
Acordando


Alexus abre os olhos lentamente e enxerga apenas imagens desfocadas. Sua cabeça ainda lateja e o estômago está embrulhado. Aos poucos, os vultos a sua volta começam a ganhar forma. O primeiro a reconhecer é o pequeno Digou, acomodado ao seu lado na cama. Um pouco mais distante, Ronald abre um sorriso de alívio e Strória, sentado numa cadeira, tenta esconder a alegria em ver Maclau despertar.
— Onde estou? — indaga o guerreiro, confuso.
— Na minha casa — informa o governador.
— O que aconteceu?
— Você desmaiou ao se aproximar uma enorme serpente — esclarece Strória. — Acreditamos que a Luz esteja dentro dela e, com a proximidade, a poção causou esse efeito. Latifa já pediu desculpas pelo inconveniente, é provável que errou na dosagem de algum ingrediente.
— Que sensação horrível — lamuria-se Alexus. — Onde estão Latifa e Nífera? Quanto tempo permaneci desacordado?
— Fique tranquilo — diz o mago —, você desmaiou por pouco tempo, menos de uma hora. Nífera e Latifa acabaram de sair para buscar nossos pertences e cavalos. Devem retornar durante a noite.
Maclau esforça-se para ficar sentado na cama. Esfrega os olhos e respira profunda e longamente.
— Você sabia da existência de uma serpente como guardiã da relíquia? — pergunta ele, voltando-se para Ronald.
— De maneira alguma. Conforme contam, Aaron, o maior guerreiro de seu tempo, organizou uma expedição pelo Lyon com muitas pessoas. Sua tripulação ficou navegando durante semanas no lago à procura da Luz. Acharam-na muito bem escondida em uma caverna subaquática. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas a embarcação atracou no porto de Reilos com quase toda sua tripulação morta, inclusive Aaron, que não estava em posse das suas preciosidades. Após isso, alguém pegou a Luz, sem sofrer dano algum, e colocou-a na mão da imponente estátua erguida a Áques. Ele foi o último humano a tocá-la sem morrer. Aaron havia escrito um diário a bordo. No entanto, ele sumiu há alguns anos. Esse conjunto de relatos contém muitas informações, algumas delas conflitantes com um segundo documento, escrito por um dos poucos sobreviventes. Toda a história que contam hoje foi baseada principalmente nessas duas fontes. Fundindo-as e mudando uma coisa aqui e outra ali, verdade seja dita.
— A serpente pode ter engolido a Luz sem querer — opina Strória. — Talvez nem existisse naquela época.
— Você tem razão — concorda Ronald. — Há várias hipóteses e uma certeza. Independentemente do que tenha acontecido, não quero mais arriscar a vida de vocês. Vou informar para a população que a missão está concluída e a Luz não voltará para o centro de Reilos.
Por mais que não admitam com palavras, Alexus e Strória sentem-se aliviados com a notícia. Se soubessem previamente o que teriam de enfrentar, nem ao menos dariam início à busca.
— Vou buscar sopa para vocês — avisa Ronald, que se retira do quarto na companhia do pequeno Digou.
— Vamos esquecer o que aconteceu? — pede Strória. — Não quero que fique este clima horrível sempre que nos virmos.
— Vamos — fala Alexus, sem convicção alguma.
— Desculpa se fiz algo inapropriado — diz o mago.
— Você não fez nada inapropriado, acontece que estou comprometido. Ainda não é oficial, mas nós queremos nos unir.
— Fico feliz por ti.
Alexus não sabe o que responder. Certamente Strória não está contente em saber disso, mas esforça-se para fingir serenidade. Para sorte de Maclau, o governador retorna antes que precise dizer algo.
— Beba tudo, Alexus. Strória, trouxe um prato para você também.
— O cheiro está delicioso — fala o mago.
— Não apenas o cheiro — opina Alexus, após a primeira colherada. — Desse jeito, certamente amanhã cedo já estarei restabelecido e pronto para voltar pra Maskáfer.

Capítulo 10
A história de Aaron


O que é ser um deus? Humanos, anões, elfos, magos phanticeusianos, gigantes e índicas provavelmente dirão que é ser superior, invencível, poderoso. Ser um deus é ter poderes distintos e responsabilidades. Também é sentir fome, sono, desejo, frustração, dúvida, assim como qualquer outro racional do planeta.
A vida no Palácio das Divindades pode transcorrer de forma monótona, fazendo com que os filhos de Céus e Clépar frequentemente aventurem-se pelo mundo e, não raro, por outros locais do universo. Há várias consequências dessas viagens. Um bom exemplo é o nascimento da raça dos magos, fruto de um relacionamento proibido entre o deus do amor, Cillion, e um humano.
A maior diversão dos deuses, todavia, é inventar artefatos mágicos e criaturas surpreendentes. A Esfera da Luz nasceu do aborrecimento de Áques. Responsável por criar e monitorar a vida no oceano e nos rios, fez duas relíquias que se tornaram o símbolo da existência subaquática. O primeiro objeto moldado foi a Esfera dos Segredos, posta em um lugar desconhecido pelos humanos, no ponto mais profundo do oceano Phantitry. Logo depois veio a Luz, colocada no maior lago do mundo, o Lyon.

-X-

Dromenis e Danielle já eram pais de três crianças quando nasceu Aaron Strodomos, no outono de 3380. Felizes, criaram com todo afeto este que seria o último filho do casal. O pequeno Aaron sempre se mostrou muito curioso e destemido. Adorava desbravar o quintal de casa e travar perigosos duelos com dragões — encarnados pelos coelhos da família ou pelos irmãos Steffani, Luc e George. Mesmo que fosse o caçula, Aaron saia-se muito bem nos confrontos, inclusive ganhava algumas vezes. Sua agilidade e perspicácia já eram comentadas pela população de Reilos quando teve seu primeiro desafio real, aos quinze anos.
Durante uma ensolarada tarde de Mares 3395, enquanto ajudava os irmãos a cortar lenha, Aaron ouviu gritos aterrorizantes vindos do centro da cidade. Imediatamente largou seus afazeres, pegou a espada e correu até o foco da confusão. Ao chegar à praça, viu uma enorme besta estraçalhando um corpo humano, a terceira vítima de um ser que misturava traços de vários animais: seu tronco era de cavalo; o rabo de escorpião gigante; a cabeça de serpente; e as patas de leão. Ao lado da besta, Eroll, conhecido por todos como Louco, gargalhava descontroladamente.
Filho de pai mago e mãe humana, Eroll era um dos pouquíssimos mestiços a se ter conhecimento — os humanos e os magos são as únicas espécies distintas que conseguem reproduzir uma com a outra, criando mestiços mais conhecidos como humagos, seres que raramente nascem com algum dom mago, mas que se tem pouco conhecimento sobre outras características.
Criado pela tia, Eroll convivera durante muitos anos sob olhares de desconfiança e repúdio. Em especial da mulher que cuidava dele, pois ela não suportava magos e descarregou toda a sua fúria e angústia no sobrinho. O resultado de tanto preconceito foi o frágil equilíbrio emocional de Eroll. Ele nunca era visto nas ruas, não recebia visitas ou frequentava a aula. Já adulto, dia após dia, estava cada vez mais isolado. Sua única diversão era praticar o dom da transmutação, escondido e amedrontado.
— Isso, Torto. Mate — berrava Eroll para aquilo que ele considerava sua obra-prima.
Vendo que havia outros moradores mortos no chão, Aaron ignorou o visível perigo e correu até Eroll. Os poucos humanos que ainda não haviam fugido gritavam, a certa distância, para Strodomos retornar, pois morreria como os demais. O jovem guerreiro ignorou os pedidos e continuou avançando. Lançou o golpe com confiança, mas seu inimigo conseguiu se esquivar. Irritado, Eroll assobiou para a criatura. Torto imediatamente largou o corpo destroçado e voltou-se para Aaron, que deu alguns passos para trás e sentiu algo tocando seu ombro. Assustado, olhou para a retaguarda e viu tratar-se de Cóllider, um reconhecido guerreiro, já com mais de quarenta anos.
— Você não está sozinho — as palavras proferidas pelo experiente lutador ecoaram com força dentro de Aaron. O jovem deu um tímido sorriso e virou novamente para os oponentes.
Ensandecido, Torto estava quase alcançando os dois humanos. Ao chegar, estes deram inicialmente golpes rasteiros para fazer com que a besta perdesse o equilíbrio. Antes de cair por causa dos ferimentos abertos em suas patas, Torto jogou sua cauda de escorpião na direção de Cóllider para injetar veneno nele. O guerreiro conseguiu se esquivar, entretanto tropeçou e caiu. Com a guarda de Torto aberta, Aaron aproveitou a oportunidade e cravou a espada em sua cabeça, matando-o. Eroll soltou um grito de agonia e saiu correndo desesperado. Ao perceber a fuga, Cóllider levantou-se às pressas e perseguiu o humago, seguido de perto por Aaron.
Não distante, os dois humanos presenciaram uma cena que nunca mais esqueceriam. Eroll estava transmutando seu próprio corpo com um cavalo de pelo avermelhado. Humago da cintura para cima e cavalo da cintura para baixo. Perplexos, os dois humanos pararam de correr. Eroll soltou um berro e aproximou-se de forma desengonçada, pois ainda não tinha domínio sobre o novo corpo. Cóllider pegou uma pequena adaga que trazia consigo na cintura e atirou contra a criatura, acertando-a no peito. Mesmo que estivesse gravemente ferido, Eroll chegou até os oponentes e tentou desferir um golpe. Estava sangrando muito e mal podia manter-se de pé. Cóllider golpeou-o na barriga e, já sem forças, o humago caiu. Chorando, passou as mãos sobre as patas de cavalo e parecia confuso. Aaron agachou ao seu lado.
— Eu só queria que alguém me amasse — sussurrou Eroll. — Ao menos vou me livrar desta dor.
Aaron segurou a mão do humago, que morreu. Normalmente cheio de convicções, Strodomos questionou-se se havia agido de maneira correta, se seus vizinhos haviam agido de maneira correta, se a cidade fora justa com um dos seus filhos.
— Você é muito corajoso, jovem. Qual o seu nome? — perguntou Cóllider.
Aaron afugentou suas indagações, ao menos temporariamente, e apresentou-se para o experiente guerreiro. Cóllider bateu no ombro do garoto e, com um sorriso melancólico, foi embora.

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Três dias após o trágico fato na cidade, a vida dos moradores voltava ao normal. Aaron estava trabalhando na marcenaria da família quando escutou alguém batendo palma. Largou os afazeres e foi ver quem era. Ao sair à rua, deparou com Cóllider e Siden, um guerreiro-mestre.
— Chegue mais perto, rapaz — pediu Siden, um homem de cabelos grisalhos e quase setenta anos. — Soube que você e meu antigo discípulo derrotaram um humago e uma criatura há poucos dias. Ele me pediu um favor e concordei de bom grado. Estamos aqui para saber se você quer ser treinado por mim.
Aaron ficou sem palavras, não conseguia acreditar que o maior lutador conhecido por ele estava ali. Era um costume os mestres escolherem seus discípulos, sendo esta uma oportunidade irrecusável. No entanto, havia vários fatores na equação, como a família. Strodomos deveria levar em consideração seus pais e o trabalho na marcenaria.
— Consulte sua família, nós vamos esperar — falou Cóllider.
— Eu já volto — avisou Aaron, que saiu correndo até a sua casa, que ficava ao lado do estabelecimento.
O jovem encontrou os pais e contou o que acabara de acontecer. Apesar de não gostarem da ideia de estar longe do filho, Dromenis e Danielle não podiam se opor ao desejo dele. Consentiram a partida e ajudaram-no a arrumar a mochila. Com tudo pronto, acompanharam Aaron até a marcenaria, onde os dois experientes guerreiros aguardavam.
— Não se preocupem — exclamou Cóllider —, seu filho será bem cuidado.
— Ele estará protegido — emendou Siden. — Além do mais, minha casa fica a poucos quilômetros da cidade. Qualquer problema, vocês podem ir visitá-lo. E, uma vez por mês, permitirei que ele venha ver a família.
Mais tranquilos, Dromenis e Danielle despediram-se do filho caçula. Apoiados um no outro, acenavam enquanto os três guerreiros afastavam-se a cavalo.

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Siden geralmente treinava seus dois pupilos, Aaron e Nila, no pátio interno de sua residência. Nila, de dezesseis anos, era uma adolescente de grande força e astúcia que se juntara a eles fazia um ano. Aaron já estava há mais de dois anos e meio no local. Obediente e prestativo, adquirira total confiança de seu mentor e buscava nunca decepcioná-lo.
Os treinos eram diários, havendo apenas dois dias de descanso para os aprendizes durante o mês. Com exceção do período de folga, a rotina incluía aulas de luta corporal, luta com espada, técnicas de defesa pessoal, aulas de música e de estratégia e afazeres domésticos. Siden nunca encostava em nenhum deles e não exigia mais do que pudessem oferecer. Em contrapartida, ordenava total atenção e esforço e não tolerava reclamações.
O pátio onde passavam o dia era grande, com uma boa área central para lutarem. No entorno, muitas flores e uma pequena fonte davam um tom tranquilizador ao ambiente. As paredes que cercavam o local eram de madeira — diferente da maioria das casas, erguida com pedras.

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O mestre ordenou uma sequência de ataques e defesas e corrigia os eventuais erros. Enquanto os dois jovens executavam diferentes chutes, a porta foi aberta e Cóllider se aproximou. Cumprimentou seu antigo mestre e ficou observando os movimentos dos novos pupilos. Logo Siden encerrou o treino e dispensou Nila, que já estava esgotada e poderia descansar. Igualmente fatigado, Aaron foi cumprimentar Cóllider e aceitou o convite para tomar chá. Por causa de suas constantes viagens, Cóllider vinha poucas vezes visitá-los.
— Aaron, ele está aqui por um motivo especial — começou a explicar Siden, na cozinha, segurando uma xícara fumegante com raízes de ameixeira. — O seu aniversário de dezoito anos está chegando e, ao contrário dos anos anteriores, nós faremos uma pequena festa com a presença dos seus amigos e familiares. Para se tornar um adulto para a sociedade você precisa completar vinte anos. No entanto, ser maduro e responsável não requer idade exata, pode ser tanto com dez anos como nunca. Nós acreditamos que você já tenha alcançado a maturidade necessária.
— Obrigado, mestre — Aaron limitou-se a agradecer. Entretanto, tentava compreender os fins práticos da declaração.
— Você deixará de ser aprendiz do Siden e se tornará meu companheiro — revelou Cóllider. — Isso, claro, se sentir-se preparado e ser do seu agrado.
A notícia inesperada deixou o jovem atônito. Treinara esperando este momento, mas não sabia que chegaria tão cedo.
— Será uma imensa honra — disse, gaguejando.
— Pois bem, os convites já foram enviados. Temos dois dias para conseguir mais comida e terminar de arrumar tudo. Nila deu uma boa adiantada nos preparativos — avisou Siden, que abriu um breve sorriso, algo não tão costumeiro.

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Já havia passado mais de quatro anos desde que Aaron virara companheiro de Cóllider. Juntos, eram saudados como os deuses da espada. Seus feitos repercutiam não somente no reino de Anger, mas também nos vizinhos. Apesar de não ser jovem, Cóllider continuava tão forte quanto dez, vinte anos atrás. Além disso, tinha um benefício a mais: a sabedoria adquirida com o passar do tempo.
Com vinte e dois anos, Aaron sentia falta de apenas uma coisa, alguém com o qual pudesse construir uma vida juntos. Nessa época conheceu Dila, mulher mais velha que fisgou seu coração. Eles adquiriram uma aconchegante casa na cidade de Reilos, próxima a de Danielle e Dromenis.

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Côsmos13, 3404.

Aaron e Cóllider aguardavam o coelho assar sentados em volta da fogueira. Encontravam-se ao sul da cidade de Gargol, próximos à divisa do reino, na Floresta dos Pirineus. O lugar era praticamente desabitado e rodeado por muitos mistérios.
Há cerca de um mês, os moradores da região procuraram os guerreiros clamando por ajuda. Conforme seus relatos, havia um lobo voador gigante cuspidor de fogo atormentando a todos. Duas vezes por mês, a criatura sobrevoava as casas ao redor da floresta para capturar presas humanas.
Fazia dez dias que Aaron e o companheiro estavam no local. O lobo voltou a aparecer enquanto jantavam o coelho que encontraram morto naquele dia.
— Deixe tudo aqui, pegue apenas sua espada. Vamos seguir o bicho até a toca dele — exclamou Cóllider, apressado, ao avistar o inimigo.
Mesmo que o lobo fosse muito rápido, os guerreiros conseguiram persegui-lo tempo suficiente para descobrir o esconderijo – uma caverna na encosta norte da montanha Intocável.
— Vamos aguardar mais um pouco antes de entrar — sugeriu Cóllider, que se acomodou escorado em uma rocha. — Na próxima semana o pequeno Aaron completará um ano de vida, não é mesmo?
— Sim — respondeu Aaron, animado. — Se chegarmos a tempo, vou preparar uma festa. Sabe, antes de virmos para cá ele falou sua primeira palavra, “papa”. Eu fiquei tão feliz, pareço um tolo.
— Não parece, não — disse seu amigo, sorrindo. — Quando Lili e Marcus aprenderam suas primeiras palavras, deram seus primeiros passos, tomaram suas primeiras decisões, tudo me deixava muito feliz. Acompanhar essas pequenas conquistas de seus filhos é infinitamente mais prazeroso que derrotar qualquer inimigo.
Aaron concordou e ficou admirando as duas enormes luas por algum tempo. Uma delas estava parcialmente coberta pela sombra de Phanticéus. Como se tivesse levado um susto, levou rapidamente a mão até os bolsos, à procura de algo.
— Por acaso você trouxe seu combustor? Deixei o meu com os demais pertences.
— Está aqui — respondeu Cóllider, que pegou do bolso da calça o pequeno objeto criado por elfos para auxiliar na hora de atear fogo em algo.
— Já podemos acender as tochas?
— Vamos.
Cóllider juntou dois galhos da grossura de seu pulso, quebrou-os para ficarem com mais ou menos meio metro cada, rasgou duas tiras da blusa e amarrou-as em volta da ponta de cada bastão. O guerreiro começou a girar a pequena manivela do combustor, uma caixa com o tamanho da metade da palma de sua mão, de espessura bem fina, e os mecanismos internos passaram a se atritar gerando fagulhas que, ao serem direcionadas para os panos, fizeram surgir fogo.
— Estive pensando em algo — exclamou Cóllider, após entregar uma das tochas para o companheiro. — É algo grandioso, talvez minha última missão. Queria arrumar uma embarcação para caçarmos a Esfera da Luz.
— Seria difícil achá-la, pois o Lyon é enorme — opinou Aaron. — Como faríamos para procurar debaixo da água?
— Eu conheço alguém que pode nos ajudar, ele se chama Sopo. Assim que chegarmos a Reilos, eu os apresentarei. Tenho certeza que você concordará ser possível caçar a Luz.
Aaron ficou curioso. Todavia, não perguntou mais nada, aguardaria. Como já havia se passado algum tempo que estavam lá, decidiram que era hora de subir a encosta da montanha, pois provavelmente o lobo deveria estar dormindo. O local era íngreme e as rochas, escorregadias.
A abertura da caverna onde a criatura havia entrado era grande e assustadora. Avançaram com cautela, pois não faziam a menor ideia de quando deparariam com o lobo. Após os trinta metros iniciais, a passagem diminuiu quase pela metade, ficando com cerca de três metros de altura e quatro de largura. Depois de uma curva para a esquerda, a dupla percebeu que estava descendo. Passaram a andar em círculos, cada vez mais para baixo. A caverna definitivamente era muito maior do que foi suposto. Os dois andaram alguns minutos até chegarem em um imenso salão. Não havia nem como ter dimensão do tamanho, pois a luz emanada das tochas não alcançava as paredes. No centro, o lobo gigante repousava com sua respiração que causava arrepios. Seu pelo era negro, salpicado com manchas brancas. As asas tinham seis metros de envergadura. Sua saliva era ácida e os dentes, enormes. Seu comprimento da ponta do rabo até o focinho chegava a oito metros.
Os deuses da espada se entreolharam, estavam com a respiração acelerada. Ambos com uma das mãos repousada sobre a arma, passaram a avançar com máximo cuidado. Os passos dados emitiam ruído algum, a atenção estava toda voltada para a criatura que dormia. Quando estavam a dez metros do lobo, sentiram um forte cheiro de queimado no ar. Faltando apenas cinco metros, levaram um susto. As pálpebras do lobo se mexeram. Os guerreiros pararam, aflitos. Como o inimigo não moveu mais, prosseguiram. No entanto, ao darem mais um passo, o bicho abriu os olhos e soltou um incandescente uivo, acendendo as várias pilhas de gravetos dispostas em torno do salão.
O lugar ficou completamente iluminado. Era grande o suficiente para o lobo bater furiosamente suas asas e levantar voo. Aaron e Cóllider correram em direção à saída, mas não rápidos o suficiente. A fera deu um rasante sobre eles e pousou em frente ao túnel de acesso. Com as asas abertas para bloquear o caminho, emitiu um ruído estranho que parecia nascer das partes mais obscuras de suas entranhas e cuspiu fogo novamente, desta vez na direção dos dois humanos, que se atiraram para lados opostos, fugindo das chamas.
— Vamos correr cada um para um lado — sugeriu Cóllider para o companheiro.
Ele e Aaron levantaram e fizeram como o planejado. Vendo a movimentação, o lobo escolheu perseguir Cóllider. Aaron aproveitou a situação para pensar em algo. Olhou para o ambiente e percebeu algumas reentrâncias na parede. Não ponderou uma única vez. Escalou o mais alto possível e chamou o amigo na esperança de que este compreendesse qual era a ideia.
Cóllider corria o mais rápido possível enquanto era perseguido cada vez mais de perto pela criatura. Após ser chamado, mudou o rumo pelo qual seguia para passar logo abaixo de onde Aaron se encontrava.
Quando o lobo cruzou pelo local, Aaron atirou-se sobre ele e agarrou o pescoço. A fera ficou furiosa, mas não conseguiu se desvencilhar do guerreiro, que cravou a espada nas costas dela. Mesmo ferida, a besta continuou avançando e estava prestes a alcançar Cóllider. Com medo de não conseguir pará-la, Aaron retirou a espada e afundou-a novamente em meio ao pelo muito denso.
O lobo soltou um uivo, deu um salto e abocanhou Cóllider. Como não tinha mais forças, acabou soltando a presa. Aaron, assustado, desceu o mais rápido possível para acudir o companheiro. O lobo morreu. Entretanto, havia feito uma última vítima.
— Por favor, resista — implorou Aaron, segurando o amigo, que teve a carne do torso dilacerada.
Strodomos pegou Cóllider no colo para carregá-lo até a floresta. Repetiu o pedido para ele resistir e insistia que tudo terminaria bem. Por mais perigosa que fosse a missão, não conseguia assimilar o fato de que seu amigo estava morrendo. Aos seus olhos, era inconcebível a perda.
Como carregava Cóllider nos braços, Aaron não pôde pegar a tocha. Logo, avançava pela passagem na escuridão. Sua pressa era tanta que tropeçou e caiu de joelhos.
— Pare, por favor — suplicou Cóllider, num fio de voz. — Não há nada que você possa fazer para me salvar. Continue sendo quem você é. Cuide-se.
O guerreiro tentou continuar falando, mas não resistiu.
Aaron começou a chorar. Nem ao menos conseguia enxergar o rosto do amigo. Durante dez minutos, ficou abraçado ao companheiro, tentava aceitar o que acabara de acontecer. Após se tranquilizar, carregou o corpo para fora. Banhada pela luz refletida pelas luas, a imagem de Cóllider morto era ainda mais triste.

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Côsmos13, 3407.

— Já faz três anos, pare de se torturar — pediu Dila, aninhada nos braços de Aaron.
— Desculpe, meu amor, mas ainda não me acostumei a ir a missões sozinho.
Mesmo que já tivesse passado tanto tempo, Aaron relembrava diariamente a morte de seu companheiro. Quando tinha tempo livre, gostava de visitar Siden para conversar, principalmente sobre Cóllider.
— Como está o seu aprendiz Cezar?
— Melhor do que eu esperava — respondeu Aaron, que se levantou para sair para o treino. — Combinei de ensiná-lo a reagir perante alucinações. Vou encontrá-lo, mas volto para o almoço.
Dila despediu-se de Aaron com um beijo. O guerreiro pegou sua mochila e saiu. Nas ruas de Reilos, caminhava devagar, cumprimentava os moradores. Ao passar na frente de um bar, resolveu entrar para tomar seiva de licórnia. Ainda era cedo e não havia cliente além dele. Estava prestes a ir embora quando entrou um phanticeusiano encoberto por uma manta, curvado e desajeitado. O desconhecido sentou ao lado de Aaron e pediu algo para comer. Sua fala era engraçada, um tanto desconexa. Strodomos não resistiu e fitou o estranho. Concluiu que nunca vira aquele humano na cidade.
— Muito prazer, eu Tile ser — falou o desconhecido, após retirar o capuz da cabeça.
Aaron igualmente se apresentou e apertou a mão dele.
— Tile você conhecer, é. Com você falar preciso tempo faz. Missão tenho. Missão. Você eu acompanhar pela rua?
Por mais estranha que a situação parecesse, Aaron aceitou escutá-lo. Muitas pessoas procuravam-no pedindo por ajuda e ele sempre dava atenção. Ambos pagaram pelos seus pedidos e deixaram o estabelecimento. Tile falava baixinho, pois temia ser ouvido pelos moradores e viajantes que transitavam pelas ruas.
— Tile querer Esfera da Luz pegar — confidenciou.
— Impossível — retrucou Aaron. — Ninguém sabe nada sobre ela. A única coisa que sabemos é que Áques colocou-a em algum lugar do Lyon. Não há como chegarmos até ela.
— Não impossível — falou Tile, com uma ponta de impaciência. — Tile conversar com Áques. Tile saber Esfera com relíquia mágica outra junta ter poderes. Tile Anel dos Ventos já ter.
— Isso é loucura, como você pode ter conversado com Áques? — Aaron mostrava-se totalmente descrente. — Além disso, como pegaríamos a Luz debaixo d’água?
— Provar conversar Tile não poder. Mas baú cheio de ouro ter. Embarcação grande Aaron comprar. Tripulação buscar. E ficar você com tudo mais ouro. Na água, amigo mago de Tile ajudar. Sopo poder anfíbio ter. Para ele e nós.
Aaron levou um susto. Recordava perfeitamente de Cóllider ter mencionado um amigo seu chamado Sopo, que poderia ajudar a achar a Luz. Em um sobressalto, perguntou sobre o guerreiro já falecido para Tile.
— Cóllider amigo de Tile ser. Ajudar eu ele ia pegar Esfera. Faz tempo eu querer, faz, sim. Áques Tile confidenciar imortalidade se Luz e Anel dos Ventos juntas ter. Tile estar morrendo, doença degenerativa ter. Tile querer melhorar — revelou o humano. — Quando Cóllider morrer, Tile e Sopo reino mago fomos cura procurar. Dois anos e meio correr sem ninguém ajudar. Tile pro plano velho voltou.
— Supondo que eu ajude, quando você me entregaria o ouro? — indagou Aaron, que estava inclinado a aceitar a proposta. Seria não apenas um grande feito se tivessem êxito, mas também uma espécie de homenagem a Cóllider.
— Tile entregar hoje ouro. Amanhã começar tripulação reunir e barco comprar.
Naquele mesmo dia, Tile foi até a casa de Aaron acompanhado de dois empregados. Eles carregavam um grande baú cheio de moedas de ouro.
Com o substancial valor em mãos, no próximo dia Strodomos procurou o dono da maior frota de barcos da cidade e ofereceu um terço das moedas em troca da melhor embarcação. A quantia era superior ao valor real do barco, sendo praticamente irrecusável a venda.
A próxima tarefa era formar a tripulação. Durante três tardes, Aaron montou uma pequena tenda ao lado da praça principal e entrevistou candidatos. Uma das perguntas feitas, por recomendação de Tile, que acompanhou o processo, era qual a opinião deles sobre magos. Acabaram selecionando vinte humanos considerados mais adequados.
— Quando eu conhecerei o Sopo? — indagou Aaron, após o fim dessa etapa. — Gostaria de conversar com ele antes do início da viagem.
— Você conhecer não — falou Tile, receoso. — Sopo medo de humanos ter. Sorte não ajudar, ele escondido está. Quando na barriga do pai, ele enfrentar mago muito grandioso. Pai de Sopo morrer e diferente ele nasceu. Já era muitos anos quando Tile o conhecer e ajudar.
Aaron não insistiu. No entanto, alertou que, se o mago tinha medo de humanos, não era aconselhado viajar na embarcação.
— Tile contar bons humanos escolhidos. Tile tranquilizar Sopo. Preocupado não precisa ficar.

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Côsmos20, 3407.

O porto estava lotado de moradores entusiasmados. Todos queriam assistir à partida da missão que causava alvoroço na cidade. Após abraçarem seus familiares, os tripulantes subiram um a um e ficaram nas laterais acenando. Aaron acompanhava toda a movimentação, sorridente. Ao seu lado, Dila carregava o filho deles no colo. Como não sabia quando voltaria, o guerreiro aproveitou cada segundo a mais ali.
Último a aparecer, Tile veio acompanhado do amigo. Curiosas, as pessoas tentavam enxergar o mago, em vão. Um manto cobria-o da cabeça aos pés, sem deixar nem ao menos um pouquinho de fora. Já no barco, Sopo foi levado direto para a cabine preparada para os dois.
— Fique bem — disse Aaron para a companheira.
— Que Áques proteja vocês — exclamou Dila.
— Que Céus guia seu caminho — falou uma voz pelas costas de Aaron.
O guerreiro virou-se e viu tratar-se de Liria, antiga companheira de Cóllider, que estava acompanhada de Lili e Marcus, seus filhos.
— Viemos dar um abraço de despedida e desejar boa missão para você — emendou Liria.
— Fico extremamente feliz com a sua presença — sussurrou Aaron, emocionado, enquanto dava um abraço em Liria.
Após despedir-se de todos, Strodomos ocupou seu lugar para comandar o barco e ordenou que as cordas fossem desamarradas, içassem a âncora e abrissem as velas. Os muitos acenos foram ficando distantes enquanto a embarcação se afastava.
Depois de três horas navegando no lago, Aaron pediu que parassem. Tile aproximou-se e informou que Sopo gostaria de conversar com o guerreiro, caso ele não se importasse. Aaron deu um suspiro de alívio, pois planejava começar a procura e precisariam do mago. Eles foram até a maior das seis cabines inferiores. Ao entrarem, Tile fechou a porta com cuidado e aproximou-se da poltrona onde Sopo estava sentado, de costas. Repousou a mão sobre o ombro do amigo e informou ter trazido Aaron.
— Então você é o famoso e destemido guerreiro que nos ajudará — exclamou Sopo, ao virar de frente para eles.
Aaron finalmente pode vê-lo. A pele do mago tinha uma cor azulada, seus lábios eram muito finos, quase invisíveis, os olhos, esticados, o nariz, pequenino, e os cabelos pareciam chorar por estarem constantemente molhados.
— Nem tão destemido, muito menos famoso — respondeu Aaron, que sorriu para mostrar-se amigável.
— Por que me olha assim? Por acaso está com medo?
— Me desculpe, não tenho medo. Tente entender: você se esconde tanto que nos deixou curiosos. — Strodomos chegou mais perto do mago. — Todos somos diferentes. Não deveria ter vergonha de estar em público.
— Prazer em te conhecer, Aaron.
Sopo estendeu a mão e cumprimentou o guerreiro.
— O prazer é meu. Gostaria de informar que estamos prontos para começar o trabalho de busca.
Tile assistiu a tudo muito empolgado, mal podia esperar para ver a tripulação vasculhando o Lyon. Os três saíram da cabine e foram até o convés. Aaron reuniu sua equipe para dar o comunicado. Os muitos olhares curiosos dirigiam-se para Sopo. Apesar do desconforto, o mago procurou não dar maior importância em ser o centro das atenções.
— Ouçam — pediu Aaron —, vamos iniciar agora os trabalhos de procura pela Luz. Para isso, contaremos com a ajuda de Sopo, que possui o dom anfíbio. Ele passará esse poder para todos, fazendo com que a gente consiga respirar debaixo d’água como se fôssemos peixes.
— Como receberemos esse poder? — indagou Judas, um dos homens a bordo.
— Basta vocês me tocarem por alguns segundos — respondeu Sopo. — É preciso ressaltar que vocês terão o poder apenas temporariamente, de duas a três horas. Quando começarem a sentir desconforto e ardência no peito, devem emergir na mesma hora.
Foi formada uma fila em frente a Sopo para que a tripulação recebesse o dom. Após serem tocados, uma sensação estranha invadia a todos, seus pulmões eram revestidos por uma camada que possibilitava filtrar o oxigênio sem se afogar.
Os humanos atiravam-se na água com receio. Ao perceberem que realmente conseguiam respirar submersos, soltavam urros de alegria e mergulhavam para o fundo. Aaron foi o último.
— Desejem-me boa sorte — disse ele, sorrindo, antes de sair correndo, dar um salto e mergulhar.
— Você sentir bem? — perguntou Tile.
— Estou bem, não precisa ficar preocupado — avisou Sopo, que tentava esconder a fraqueza após transferir tanto poder.
Enquanto o mago procurava restabelecer sua força, a equipe de busca percorria as profundezas do imenso Lyon. Apesar da transparência da água, o lugar era bem escuro. Maravilhados pelos muitos animais aquáticos de todos os tipos, boa parcela dos humanos passou a maior parte do tempo divertindo-se com o dom temporário.
Os dias seguintes foram de muita alegria. Apesar de não conseguirem encontrar a relíquia, havia uma onda de entusiasmo entre os tripulantes. O único preocupado era Tile, pois percebia o estado debilitado que o amigo ficava quando repassava seu dom.
Todas as noites, antes de dormir, Aaron sentava ao lado da escrivaninha e gastava alguns minutos do seu tempo para relatar os acontecimentos do dia em seu diário. Tornara-se um costume deixar por escrito os acontecimentos das missões. Para esta, que considerava especial, comprou um novo livro. Desde o primeiro dia, descrevia nas páginas amareladas todos os fatos ocorridos.

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Dois meses após o início da missão, o clima havia mudado. Sopo passava o dia deitado, apenas levantava para comer ou repassar seu dom. Tile perdia um pouquinho mais a esperança de achar a relíquia a cada nova busca frustrada. A tripulação demonstrava cansaço. Aaron era o único que tentava manter o clima otimista — e estava conseguindo até a fatídica tarde de Cléparos25, quando um de seus homens não retornou da procura.
Estranhando a atípica demora, Aaron e mais alguns companheiros encostaram em Sopo novamente e voltaram para a água. Nadaram pelas redondezas do lugar e encontraram o tripulante desaparecido. Ele estava desfigurado. O medo de ser atacado por algum animal aquático aumentou. Aliou-se a isso a saudade de casa que a maioria sentia, crescente há algum tempo, e um movimento contrário à permanência no lago tomou forma.
— Acho que nós deveríamos retornar — opinou Conan, um dos membros da equipe.
— Não podemos nos abater agora — rebateu Aaron, percebendo que muitos concordavam com Conan. — Vocês sabiam antes de partirmos que não seria uma tarefa fácil, que haveria perigos e poderia demorar.
— Um homem morreu — gritou Judas. — Um de nós morreu, as provisões são poucas e todos estão esgotados.
— Lamento muito a morte de nosso companheiro — falou Aaron, com firmeza —, mas devemos continuar. Enquanto houver comida, continuaremos. Enquanto houver um resquício de esperança, continuaremos. A partir de amanhã, procuraremos com mais empenho e vamos conseguir.
— Essa relíquia não vale mais do que nossas vidas — murmurou Judas enquanto se afastava. Os demais humanos dispersaram-se em silêncio.
Triste, Tile foi para a sua cabine. Aaron já não tinha mais certeza de qual decisão tomar e esperou os ânimos acalmarem antes de chegar a alguma resolução.
Três dias depois, enquanto todos vasculhavam o lago em nova procura, Conan e Judas acharam uma pequena caverna subaquática. Por mais que estivessem receosos de haver algum animal perigoso nela, decidiram entrar. Apesar de a abertura ser pequena, a caverna era extensa. Na mais completa escuridão, estavam prestes a desistir e retornar quando avistaram um pequeno ponto luminoso. Animados, avançaram até o objeto brilhante. A relíquia era linda, iluminava as paredes rochosas ao redor. Judas chegou perto para encostar na Esfera da Luz. Entretanto, Conan foi mais rápido e pegou-a primeira. Ao tocar nela, sua mão grudou na superfície da Luz e ele começou a gritar, sem ser escutado. Seus ossos pareciam estar todos partindo ao meio e a pele queimava. Rapidamente foi mudando até virar um peixe de meio metro.
Horrorizado com a cena que acabara de presenciar, Judas fugiu. Desesperado, não olhou sequer uma única vez para trás até chegar ao barco. Subiu pela corda em poucos segundos e ficou ajoelhado na proa tentando recuperar o fôlego. Tossiu a água que tinha em seu interior e tremia muito.
— Acontecer o quê? — perguntou Tile, que correu ao seu encontro.
Judas precisou de mais tempo para ficar calmo o suficiente e contar. Tile aguardou ao seu lado. Enquanto isso, os outros humanos retornavam. Quando Aaron chegou, quase todos os tripulantes estavam na embarcação e sabiam do ocorrido. Um misto de alívio e preocupação se instalou. A Luz finalmente foi encontrada, o que era ótimo. Todavia, aparentemente não poderiam tocá-la.
— É simples — falou Dromor, um dos mais jovens da equipe —, se não podemos tocá-la, vamos levar uma mochila para cobri-la.
Por mais que fizesse certo sentido, parecia fácil demais. Aaron achou melhor não arriscar. Resoluto, Dromor disse que ele mesmo faria isso. Judas concordou em acompanhá-lo para indicar a caverna. Apesar de contrariado, Aaron decidiu descer também. Sopo repassou seu dom e os três humanos voltaram para a água. Eles entraram na caverna com cautela. Ao chegarem onde estava a Esfera da Luz, apenas Dromor se aproximou. Ele colocou a mochila sobre a relíquia em um movimento muito rápido. Por um segundo, pareceria estar tudo bem, então a cena de horror aconteceu novamente. O grito mudo acompanhava a expressão de desespero. O corpo de Dromor era remodelado em velocidade incrível e logo um novo peixe surgiu.
Aaron assistiu à cena sem se mexer. Entretanto, um sentimento estranho o incitava a chegar mais perto. Não entendia muito bem, mas um desejo de tocar a Luz apoderou-se dele. Com o fim completo da transformação de Dromor, lutou contra a própria vontade e foi embora. Judas já havia deixado a caverna.
No barco, rostos de desolação deixavam claro o sentimento predominante. Dois homens já se transfiguraram ao tocar a relíquia. Sem novas ideias, Aaron dispensou o grupo e foi para a sua cabine. Lá, pensaria em uma alternativa e esperava ter algo em mente no próximo dia. Por mais que estivesse física e mentalmente cansado, relatou os acontecimentos no diário. Enquanto escrevia, matutava possibilidades de ação. A tripulação estava descrente e ele deveria ser o portador da solução.
Strodomos ficou tonto de sono. Um forte desejo de dormir tomou conta do seu corpo. A letra estava quase ininteligível. O papel ficou borrado. Algo ou alguém parecia chamá-lo e o guerreiro apagou.

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— Venha até aqui. Segure minha mão — chamou um menino de sorriso encantador.
Aaron atendeu ao chamado e caminhou em meio à plantação cercada de árvores frutíferas. No céu não havia nuvens. A temperatura era agradável. O humano andava com as mãos abertas, tocava os galhos rasteiros de cor amarela. Contente, chegou até onde a criança estava e segurou a mão dela. O garoto arrastou-o até o córrego, onde passaram a andar em círculos, cantarolando.
— Repita comigo — pediu o menino —, sou um pássaro que voa. Sou uma planta cheirosa. Sou um peixe que nada.
Sem compreender o motivo de tanta felicidade, Aaron repetia a canção entoada por aquele jovem de rosto familiar. Os dois pulavam e comemoravam muito. Giraram tanto a ponto de Strodomos ficar enjoado. O menino calou e passou a apertar as mãos do adulto. Sua força era indescritível. Seu rosto ganhou contornos mais soturnos.
— Você irá me pegar e eu vou matar você — ecoou a voz por todos os cantos, fazendo com que Aaron acordasse.
O guerreiro deu um pulo e derrubou a cadeira. Sua cabeça latejava e a boca estava seca. Atordoado, resolver ir à cozinha beber água. Enquanto passava pelo corredor, escutou uma voz suave chamá-lo. Não deu importância em um primeiro momento, contudo, com a repetição do som, virou para o sentido oposto à procura de quem falava. Deu seis passos e deparou com Tile, que chorava e perguntou:
— Por quê?
— O que está acontecendo? — Aaron não compreendia mais nada. Será que ficara louco? Já não conseguia distinguir alucinações da realidade.
— Tile em você confiar. Tile amigo ser. Você trair. Trair. Fim eu dar.
Tile cravou um punhal na barriga de Aaron, fazendo com que ele desse um grito e acordasse. Strodomos estava deitado em sua cama, completamente molhado. Não conseguia se concentrar. Não fazia ideia de como havia chegado ali e ficado naquele estado.
— Isso tudo só pode ser um sonho — disse para si mesmo.
O guerreiro escutou algumas batidas na porta. Focado em tentar ordenar seus pensamentos, não respondeu. Em seguida Sopo entrou na cabine, assustado.
— Escutei muitos gritos. Tudo bem? — indagou o mago, após ajoelhar ao lado da cama.
— Está doendo muito — murmurou Aaron, quase sem forças. A sensação de desconforto era enorme, insuportável. Queria pedir ajuda, mas se sentia engasgado.
— Vou acabar com seu sofrimento — disse Sopo, que se inclinou um pouco e colocou as mãos sobre a garganta do guerreiro. Com um semblante de satisfação, começou a sufocá-lo.
Aaron debatia-se na tentativa de se esquivar, em vão. Prestes a ficar inconsciente, acordou. Sentia-se completamente leve. A dor de cabeça havia sumido. Abriu os olhos com calma e tomou um susto. Estava submerso. Passou a nadar com rapidez para chegar à superfície. Porém, seu corpo demonstrava esgotamento e logo teve que parar. Quando achou que morreria, deixou que a água invadisse seu corpo e percebeu que continuava respirando.
Calmo, olhou ao seu redor e viu um ponto luminoso. Uma voz enigmática dizia para ele se apressar, pois já estava quase na hora da troca dos dias. Por mais que não compreendesse, algo dentro dele falava para seguir até a claridade. Foi em direção ao ponto reluzente, viu tratar-se da Esfera da Luz e sorriu. Ela era perigosamente linda. Chegou muito próximo e a enigmática voz sussurrou no seu ouvido para ele pegar a relíquia. Não havia como resistir. Aaron estendeu a mão e agarrou-a com força.

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Os borrões começaram a ganhar forma aos poucos. Aaron esfregou os olhos e percebeu estar deitado na cama da sua cabine. Os raios de sol invadiam o quarto pela janela e iluminavam-no todo. Fragmentos de diversas situações atingiam o humano como se fossem relâmpagos de lembranças.
Strodomos inclinou-se com dificuldade para o lado e ficou sentado. Parecia ter corrido durante um dia inteiro de tanto que o corpo doía. Não compreendia como era possível. Tudo só poderia ser um intenso sonho, era surreal demais para passar disso. No entanto, por mais absurdo que parecesse, algo acontecera. A escrivaninha ao lado estava um caos, com papéis espalhados e tinta derramada. Aproximou-se para arrumar. O diário estava com sua última frase inacabada, exatamente como lembrava, seguida por um caminho de tinta que chegava em um papel rasgado e amassado. O guerreiro pegou o documento na mão. Havia um texto curto, provavelmente escrito por ele, levando em conta a caligrafia.

Hoje a enigmática Esfera da Luz me cedeu sua alma. Ela me pertence e estou feliz por ter me escolhido. Não somos nós que a conquistamos, é ela quem determina seu próprio futuro. Segui tudo o que me foi ordenado. Na passagem dos dias, enquanto emanava seu poder, ela deixou que eu a sentisse pela primeira vez.

Perplexo, Strodomos largou a folha e deu dois passos para trás. Só poderia ser brincadeira. Olhou ao redor e levou novo choque. No canto do quarto, sem reluzir mais, repousava a Luz. O guerreiro foi até ela e agarrou-a com cuidado. Mesmo que não mantivesse seu brilho intenso, era magnífica.
O quebra-cabeça de cenas na mente de Aaron passou a angustiá-lo mais ainda. Se ele realmente pegara a Luz, os fragmentos de lembranças que o atormentavam poderiam ser reais. Caso fossem, Tile e Sopo tentaram matá-lo. Instintivamente, Strodomos passou a mão pela barriga e o pescoço. Não havia corte algum, nem ao menos qualquer hematoma.
Cedo ou tarde deveria comunicar a novidade para os outros. Pegou uma pequena bolsa e largou a relíquia dentro. Segurou-a com força e foi até o convés do barco. A tripulação já aguardava no local. Aaron cumprimentou Tile e Sopo, sendo que nenhum deles demonstrava qualquer mudança de comportamento.
— Meus amigos, eu tenho uma novidade para contar — anunciou Aaron. — Por favor, aproximem-se todos.
Os demais cercaram o guerreiro, que suava frio. Ele não sabia ao certo como dar a notícia, por onde começar, o que exatamente deveria contar e o que omitir.
— Eu estou com ela — gaguejou.
— Aaron o que falar? — perguntou Tile, um tanto confuso.
— Eu não sabia o que fazer. Então, noite passada, em um ímpeto de loucura, toquei em Sopo enquanto ele dormia, desci até a caverna e agarrei a Luz sem ficar com nenhum arranhão.
— Como isso pode ser possível? — indagou Judas, que havia presenciado duas mortes causadas apenas pelo simples contato com a relíquia.
— Eu não sei, realmente não sei o que fiz de diferente — disse Aaron, que não queria revelar o que havia lido. Ele colocou a mão na bolsa e tirou o objeto de dentro. — O que eu sei é que ela nos pertence.
— Posso eu ela pegar? — perguntou Tile, que abriu um enorme sorriso.
— Não é seguro — respondeu Aaron, na tentativa de afastá-lo.
A negativa foi em vão. Tile deu um salto de alegria e tomou a relíquia para si. Sua felicidade, todavia, rapidamente mudou para o total pânico. Ele abriu a boca para falar algo, mas já era tarde demais. Seu corpo começou a sofrer mutações e, em vez de transformar-se em peixe, virou cinzas. Sopo soltou um grito de pavor e passou a chorar desesperadamente. Enquanto a tripulação assistia à cena horrorizada, Aaron juntou a Luz, que rolou em sua direção.
Os humanos passaram a olhar para Strodomos de maneira estranha. Pareciam responsabilizá-lo por todo o mal ocorrido. Confuso e acuado, o guerreiro voltou às pressas para o quarto, trancou a porta e deitou no chão. Uma sensação de pavor percorria seu corpo de uma extremidade até a outra.
— O que há com você? — perguntou Sopo, do lado de fora. — É perceptível que há algo de errado.
— Vocês estão me responsabilizando pelas mortes.
— Ninguém culpa você por nada. Eles apenas estão com medo. Você precisa falar algo para acalmá-los.
— Preciso ficar sozinho. Por favor, assuma o controle e inicie o retorno para Reilos.
Por mais que estivesse devastado, Sopo assentiu sem falar mais nada. Algo perturbava Aaron e não adiantaria insistir. O mago se retirou e fez conforme a ele solicitado.
Ao cair da noite, quando já não se ouvia praticamente som algum, Aaron entrou sorrateiramente no quarto de Tile para vasculhar seus pertences à procura do Anel dos Ventos. Logo encontrou o objeto e abriu um sorriso, pois saberia se era verdade que juntando as duas relíquias passaria a ser imortal. Estava tão excitado que nem ao menos percebeu a porta ser aberta. Antes de conseguir unir os objetos, alguém arremessou uma lança, que perfurou suas costas e saiu pelo peito. Com o sangue quente vertendo, Aaron largou as relíquias e caiu sem vida.

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Muitas vezes os deuses cansam de suas próprias brincadeiras. Outras vezes, querem brincar mais. Áques, deus dos mares e rios, viu com satisfação, muitos anos depois, a Esfera da Luz ser devolvida ao Lyon. O deus logo tratou de tomar precauções para ela não ser pega novamente. Criou uma besta chamada por ele de Serpente Guardiã, animal que engoliu a preciosidade.

Capítulo 11
Pesadelo

Citrus1, 4056.

É fim de tarde quando Alexus avista Maskáfer. Exausto e temeroso, fez o contorno por Mesmer durante a viagem de retorno. Seus últimos dias foram de uma agitação ímpar e, com o intuito de espairecer, decidiu que pediria ao rei algum tempo de dispensa para visitar a mãe em Bradário. Além disso, finalmente comunicará a intenção de unir-se a Mia e convidará a amada para acompanhá-lo no passeio ao sul do reino. Está planejando dizer para a sua mãe vender a casa e vir morar na capital. Com as moedas de ouro que obterão com a venda e os recursos que o guerreiro tem guardado, podem construir um aconchegante lar. Constituir uma nova família. O difícil será convencer Morgan a deixar a filha sair do castelo.
Enquanto Maclau passa pelas ruas da cidade, os moradores saúdam o seu retorno. Sorridente, o guerreiro chega ao castelo e cumprimenta todos os colegas. Apeia e deixa Fogo seguir sozinho para o estábulo. Muito sujo, pede para alguém avisar para o rei sobre sua volta. Enquanto isso, vai para o quarto tomar banho e vestir uma roupa limpa. A maior preocupação é não ser visto pela princesa ainda.
Quando está quase pronto, escuta batidas na porta. Coloca rapidamente a roupa e vai ver quem é. Radiante, Mia pula nos seus braços. Eles beijam-se calorosamente. A saudade é tanta que os movimentos são desajeitados, apressados. Nem mesmo eles conseguiriam dimensionar a falta que sentiram um do outro até este momento.
— Você disse que retornaria logo — Mia repreende seu amado enquanto acaricia o rosto dele.
— Desculpa. Não achei que seria uma missão tão difícil, nem ao menos conseguimos resgatar a Luz.
Mia sorri e continua beijando Alexus. Seu coração, que antes parecia pesar muito, está mais leve com o retorno dele. Enquanto trocam carícias, escutam alguém pigarrear no corredor. Mia leva um susto pensando ser seu pai. Para alívio dela, é um dos guardas que veio avisar que o rei aguarda Alexus no escritório.
— Posso contar tudo para seu pai? — pergunta Alexus, antes de deixar o quarto.
— Claro que sim — exclama Mia, contente. — Eu só gostaria de estar também.
— Vou aguardar o momento mais apropriado para nos reunirmos.
A princesa concorda e acompanha Maclau até a entrada do escritório. Lá dentro, Morgan espera, ansioso. Quando vê o guerreiro ir ao seu encontro, o rei levanta para abraçá-lo afetuosamente.
— Quero saber todos os detalhes do que aconteceu em Reilos.
— Com a ajuda dos magos, achei o homem que pegou a Esfera da Luz. Acabei descobrindo que ele é irmão de Demetrio Estendo, aquele que invadiu o castelo para pegar a Pedra de Céus.
— Você matou o ladrão? — indaga o rei, que cora após escutar a notícia.
— Julguei não ser necessário. Ele me indicou a localização da Luz e fui embora. Depois disso, os magos e eu vasculhamos o Lyon à procura da relíquia, sem sucesso.
— Você se deu bem com eles?
— Eles são ótimos. Confesso apenas ter ficado surpreso por só agora conhecê-los, já que faz bom tempo que trabalham para o reino.
— Bem, você sabe que um rei deve manter muitos segredos — admite Morgan. — A presença de magos no reino era algo problemático até há pouco tempo. Nem todo mundo conseguia enxergá-los como amigos. Para não gerar discussões, preferi deixar esse assunto, assim como outros tantos, em um nível bem restrito de conhecimento da minha equipe.
— Compreendo seu ponto.
— Quer dizer que não há chance alguma de termos a Luz de volta?
Alexus explica o que ocorreu, fazendo o rei rir em alguns momentos. Este, cansado do assunto, convida o amigo para passear a cavalo no próximo dia.
Alexus aceita o convite e dirige-se ao estábulo para ver Fogo. Ao chegar, o cavalo já está deitado dormindo. Maclau coloca algumas frutas no coxo para o companheiro comer quando acordar. Enquanto caminha pelo jardim, um dos cozinheiros o chama, pois a refeição está servida. Faminto, Alexus adianta suas passadas até a sala de jantar. É o primeiro a chegar e, por educação, espera os demais. Parece melhorar só de olhar para a comida. Sua vontade é de jogar-se sobre as tigelas e comer com as mãos. De tão concentrado, nem ao menos percebe a rainha se aproximar.
— Há quantos dias você está sem comer? — indaga Dorothy, após soltar uma bela gargalhada.
O guerreiro sorri e abraça a rainha.
— Pode comer. Não precisa esperar pelos outros.
— Consigo aguentar mais um pouco.
— Se quiser ficar parado, fique. Eu vou me servir.
Já que não é o único, Alexus inicia a refeição. Enche o prato sem cerimônia e quase baba após cada garfada. Não demora muito para aparecer Mia, o rei e a prefeita de Maskáfer, Kasas Melquier. Envergonhado, Maclau levanta para cumprimentá-los.
— Fique sentado, rapaz — exclama a rainha. — Continue comendo e deixe-os de lado.
Os demais se servem. Durante o jantar, o rei toca no assunto do passeio que fará no próximo dia com Alexus.
— Posso ir com vocês? — imediatamente pergunta Mia.
— Você se importa, Alexus? — consulta Morgan.
— Será perfeito — responde o guerreiro, enquanto fita sua amada.
— Então está decidido. Vamos os três.
— A mamãe não pode ir junto?
— Não seria uma má ideia cavalgar — observa Dorothy.
— Não fará mal para suas costas, meu bem? — fala o rei, preocupado.
— Fará menos que você deitado sobre mim.
O rei quase engasga com a resposta atrevida da companheira. Mia e Alexus sorriem encabulados. Kasas, geralmente muito formal, vira o copo com seiva fermentada de ameixeira para beber tudo de uma vez só.
— Vamos os quatro, então — exclama Morgan. — E você, Kasas, não quer ir conosco?
— Já tive emoção suficiente para o mês — responde a prefeita, em tom descontraído.
Alexus procura não demonstrar, mas está cada vez mais nervoso. Concluída a refeição, retira-se logo para o quarto. Deve repousar e, sobretudo, se acalmar. Por temer reações negativas no próximo dia, demora muito para adormecer e, quando consegue, seu sono é agitado.
Alexus e Mia estão sentados em uma praça, abraçados. Assistem ao transitar frenético da população de um lado para o outro. Com o intuito de fazer uma surpresa, Maclau diz que já volta e vai comprar flores para a amada. Enquanto retorna com lindas alamarianas brancas, enxerga um vulto conhecido no meio da multidão. Não consegue identificar ao certo quem é, mas uma estranha sensação invade seu peito. Numa fração de segundo, perde-o de vista. Aflito, procura pelo humano em todos os lugares, sem sucesso.
Em um sobressalto, Alexus acorda ensopado de suor. Teve apenas um pesadelo. No entanto, o temor de que algo dará errado cresce em seu peito e ele não consegue mais dormir.

Capítulo 12
Revelação


O sol ilumina o quarto de Alexus, que levanta a contragosto. Pôde de fato repousar durante pouco tempo, mas precisa descer mesmo assim, pois chegou o esperado dia de contar para o rei e a rainha o desejo de unir-se a Mia. Maclau está tão nervoso que provavelmente preferiria enfrentar um dragão novamente a passar por isso.
Veste-se e vai tomar café da manhã. Como previsto, os demais ainda dormem. Na cozinha, Alexus serve-se sozinho. Enquanto come, recorda do dia que chegou a Maskáfer, logo após passar a integrar a tropa real. Sem conhecer ninguém na cidade, dividiu com outros dois empregados uma das casas construídas na área do castelo. À época, nem passava pela sua cabeça a hipótese de morar no castelo. Desse período, a lembrança mais vívida é da primeira vez que viu a princesa. Ela caminhava sozinha pelo jardim, cantarolando. Havia algo diferente e mágico em sua presença.
Maclau está terminando de guardar o que sobrou do pão quando entra Dília, uma cozinheira. Ela cumprimenta-o e pergunta se está tudo bem. O guerreiro faz uma estranha cara de espanto e balança a cabeça positivamente.
— Quando chegar a hora, fale com calma e segurança. Não há nada com o que se preocupar — sussurra Dília, após ter certeza de que não há ninguém perto para escutar.
— Como você sabe?
— As paredes deste castelo têm ouvidos. Creio que o único que não sabe ainda é o rei. Melhor dizendo. Ele deve saber também, apenas aguarda o seu pedido.
As palavras são ditas com a intenção de acalmar. Entretanto, Alexus fica ainda mais nervoso. Enquanto ele caminha na direção da biblioteca, depara com Morgan nas proximidades do salão de festas.
— Bom dia, Alexus — fala o rei, animado. — Vejo que caiu da cama. Me acompanha no café?
— Acabei de comer.
— Muito bem. Está pronto para partir?
— Estou, sim.
— Então vá adiantando as coisas. Traga Fogo, Centur, Liz e Galgo. Mia e Dorothy já vão descer também e logo nos juntaremos a você.
Alexus vai até o estábulo. Dá uma dose extra de comida para os cavalos e pede para que o acompanhem até a entrada frontal do castelo. No caminho, passa pela cozinha para pegar alimentos e uma toalha para a viagem.
— Bom dia — cumprimenta Mia, deslumbrante. Seu vestido é vermelho, curto e não tem adereços. O cabelo está preso por uma tiara de ouro. Seu sorriso é inebriante.
Morgan e Dorothy aparecem em seguida, com trajes informais, algo não usualmente visto. O rei monta em Centur, seu cavalo, a rainha, em Galgo, e Mia, em Liz. Eles seguem Alexus e Fogo, que se dirigem para a saída norte da cidade.
— Meus ossos chegam a estalar de alegria — brinca Dorothy.
— Não sei se alegria seria a palavra mais adequada, meu bem — diz o rei.
A pequena comitiva avança em direção a uma linda cachoeira que fica a trinta quilômetros de Maskáfer, no percurso para o oceano. O lugar é pouco conhecido por ficar no meio da mata virgem. De grande beleza, a queda d’água é uma das muitas do rio Norte, impossibilitando a navegação nele. Com cerca de uma hora de cavalgada tranquila, chegam ao local.
Após descarregar os alimentos, Alexus diz que entrará no rio. Mia e Dorothy resolvem se banhar também. Os três usam trajes que cobrem apenas a região pélvica. A água é tão cristalina que enxergam os peixes nadando. Por causa dos muitos medalhões, que têm em média um quilo quando adultos e são dourados, o rio cintila como se tivesse roubado as estrelas do céu.
— Que tal começarmos a comer? — sugere o rei, após ficar sentado relaxando durante mais de duas horas.
Os demais saem do rio e fazem um círculo ao redor das frutas e dos pães que trouxeram. Finalmente chegou o momento perfeito e Maclau quase não consegue engolir o alimento. Trava mais de uma vez até que seus pensamentos transformam-se em palavras.
— Preciso fazer um pedido importante para vocês.
— Por Céus, chegou a hora — fala Dorothy, quase berrando.
— Fique calma — pede Morgan.
— Como vocês já devem ter reparado, Mia e eu sentimos um apreço muito grande um pelo outro. Nós chegamos à conclusão de que queremos compartilhar nossas vidas assim como vocês compartilham as suas. Eu amo Mia e gostaria de saber se tenho a permissão para viver com ela.
Igualmente nervosa, Mia tateia à procura da mão do amado. Após achá-la, segura-a com força enquanto Alexus fala. Sabe que seus pais não estariam ali se não gostassem muito de Maclau. Mesmo assim, é um momento de tensão.
— Bem, não darei minha permissão — fala Morgan, deixando os outros perplexos.
— Como assim, pai? — interfere Mia, sem compreender.
— Não darei a permissão por não ser necessário. Essa escolha é você, filha, que deve fazer. E pelo que posso perceber, a decisão já foi tomada. Não quero cometer o mesmo erro que meus antepassados cometeram ao impor uniões. Tenho a sorte de estar ao lado de uma mulher que amo muito, mas poderia ser bem diferente. Não importa que eu seja o rei, que você seja princesa. Não quero associar esses títulos a prisões, a convenções que não funcionam. Apenas quero que vocês sejam felizes.
Alexus sorri, aliviado. Por um instante, seu coração parou de bater por causa do susto que levou. Morgan aproxima-se e coloca a mão no seu ombro. Dorothy dá um abraço quase caindo sobre ele.
— Nós precisamos começar a pensar na festa da união — lembra a rainha, emocionada.
— Antes disso eu queria um tempo de dispensa para visitar minha mãe e convencê-la a vir morar em Maskáfer — fala Maclau. — Vendendo nossa casa em Bradário e juntando minhas economias, terei dinheiro suficiente para construir um belo lar. Também gostaria de saber se Mia pode me acompanhar na viagem.
— Vejo que você já tem muitos planos — exclama o rei. — Permito a dispensa para buscar sua mãe. Fique o tempo que quiser. Não quero ser estraga prazer, mas acho que seria melhor Mia ficar, pois é um trajeto longo e é perigoso ir apenas vocês dois. Sobre a casa, é muito melhor todos morarem no castelo.
— Não quero que vocês fiquem chateados, mas gostaria de construir um lar para Mia.
— Filho, creio que você não tenha entendido ainda as implicações desse relacionamento. Mia é minha única filha e ela é uma princesa. Se estiver com ela, será o próximo rei de Anger. E caso ela não queira governar e prefira passar a responsabilidade para as suas mãos, será a pessoa mais poderosa do reino. Isso se a população consentir, claro. Algo que certamente fará, se for preciso. De qualquer forma, o castelo será a casa de vocês, as decisões mais importantes do nosso povo estarão em suas mãos. Pretendo governar por bom tempo, mas desde já você também será preparado para um futuro sem a minha presença.
Alexus fica sem saber o que responder. Obviamente havia pensado em todas as implicações que há ao unir-se a uma princesa, mas cogitou a hipótese, sem saber ao certo como tudo funciona, de ficar distante do castelo enquanto não chegar a hora da amada governar.
— Creio ter feito um julgamento equivocado da situação. Peço desculpa.
— Não precisa se desculpar. Mas vamos deixar esses pormenores para o futuro. Agora é hora de comemorar.
Eles abrem uma garrafa de seiva de borboréu e brindam com os copos de madeira que trouxeram. Enquanto bebem alegres, escutam um barulho vindo da mata.
— Tem alguém aí? — grita o rei.
— Você pensou que mandaria matar seu filho e não teria nenhuma consequência? — indaga Norman, que surge de trás de uma árvore. Ele aponta o arco para a cabeça de Morgan.
Alexus rapidamente fica de pé em posição de defesa. Segura a espada com as duas mãos e acompanha os movimentos do inimigo.
— O que está acontecendo? O que ele está dizendo? — pergunta Mia, confusa.
— Não saia do lugar — ordena Norman para Alexus, após vê-lo movimentar-se para tentar se posicionar na frente do rei.
— Fale alguma coisa, Morgan — pede Dorothy.
— Demetrio, o homem que roubou a Pedra de Céus, era meu filho.
— Você tem outra família, pai? — indaga Mia, com lágrimas brotando.
— Não. É fruto de um relacionamento que tive antes de me unir à sua mãe.
— Você ordenou que eu matasse seu próprio filho? — Alexus fica chocado.
— Ele é capaz de qualquer coisa — interfere Norman. — Este homem não tem escrúpulos e merece sofrer da mesma forma que meus pais sofrem.
Enquanto Estendo fala, começa a mudar lentamente o alvo para quem aponta o arco.
— Ele já mostrou total indiferença à morte de um filho, certamente aguentará o fim de outro.
Alexus estremece e segura a espada com toda a força que dispõe. O rei e a rainha gritam desesperados. Mia fecha seus olhos. Normam estica o máximo possível a corda do arco. Maclau arremessa a espada na direção do oponente, separando quase por completo a cabeça do resto do corpo. Todavia, é tarde demais. A flecha, que já havia se desprendido do arco, atravessa a barriga de Mia. A princesa dá dois passos para trás e cai.
— Não faça isso conosco, aguente firme — suplica o rei, que segura a filha em seus braços. Ele volta-se para Alexus, que está ao lado. — Salve-a, por favor.
O guerreiro acomoda a princesa em cima de Fogo e cavalga de volta para Maskáfer.
— Mais rápido, meu amigo. Mais rápido — pede Alexus, desesperado.
Ele está em uma corrida contra o tempo. Mia delira e faz força para não ficar inconsciente. O sangue escorre pelo ventre do cavalo. A cada minuto que passa, Alexus fica mais nervoso. Parece que não chegarão nunca. Quando avista as torres do castelo, nem consegue aproveitar o momentâneo alívio.
O guerreiro entra no salão de festas berrando por cuidados médicos. Carrega Mia até o quarto dele. Alguns guardas acompanham-no, curiosos e angustiados. Quando o médico aparece, pede para todos se afastarem. Ele corta a ponta da flecha e retira-a com cuidado. Passa uma composição de ervas sobre os ferimentos de entrada e saída e tampa-os com panos. Pega um segundo frasco e faz com que a princesa engula um pouco do líquido.
— Peça a ajuda de Céus — o médico sussurra para Alexus.
Morgan e Dorothy entram no quarto, esbaforidos. Os dois sentam na cama, cada um de um lado, e seguram as mãos da filha. O rei está devastado. Sabe muito bem que cometeu erros imperdoáveis na vida, mas não admite a possibilidade de outra pessoa pagar por eles.

Capítulo 13
A nova ameaça


Entre as diversas tarefas de Strória, uma delas é passar sempre que possível em todas as cidades do reino para verificar se há algum problema a resolver. Ele entra em contato apenas com os chefes das guardas locais, integrantes do limitado grupo de humanos que sabem que os três magos trabalham para a coroa.
Como de costume, Strória transporta-se instantaneamente para o pátio da casa de Zmir, em Porto. Por já ser noite, espera encontrá-lo sozinho ou com o seu companheiro em algum local da residência. Desta vez, todavia, não há movimentação alguma. Sem outra escolha, resolve ir para o prédio da guarda.
Lá, Zmir e outros cinco guardas cercam um homem encharcado.
— Não, ele logo desmaiou — fala o humano que aparentemente está sendo interrogado.
Ao avistar Strória, Zmir caminha em sua direção e o cumprimenta. Eles afastam-se dos demais.
— O que está acontecendo? — indaga o mago.
— Uma guerra está por começar.
— Como assim?
— Um elfo quase morto foi resgatado do oceano por Mali, esse residente local que está todo molhado. Parece que antes de desmaiar, o elfo contou algo horrível.

-X-

O salão de festas do Castelo Real encontra-se vazio. Repentinamente, Strória aparece. O mago corre em direção ao quarto do rei Morgan IV. No caminho, antes de alcançar o primeiro lance da escada, avista três guardas conversando na sala do trono e pergunta onde o rei está. Vai para o segundo andar e avista Alexus sentado no chão, chorando.
— Aconteceu uma tragédia.
— O que foi, Alexus?
— Mia vai morrer.
— Como morrer?
— Você não sabe? Norman acertou-a com uma flecha, que perfurou a barriga. Ela vai… — Maclau não consegue terminar a frase.
Strória agacha na frente do humano e o consola. Abraça-o sem jeito.
— Fique tranquilo. Leve-me até ela.
Desolado, Alexus conduz o mago até o seu quarto, onde estão, além de Mia, Dorothy, Morgan e o médico. Strória olha para a enferma, que está desacordada, ensopada de suor e tremendo.
— Para onde ele foi? — pergunta Dorothy, após Strória desaparecer. A rainha não conhece o mago. Entretanto, devido às circunstâncias, não deu tanta importância para a sua presença.
— Eu não sei — responde Alexus, com a voz oscilante. É difícil olhar para sua amada neste estado.
— Ela está piorando — informa o médico.
Para não desmaiar, a rainha recosta a cabeça no colchão e respira profundamente. Alexus vai para um canto, quieto. Morgan tem vontade de gritar de tanta dor. A culpa corrói-o com tamanha intensidade que parece que ele será consumido por completo.
— Retire as ataduras de cima do ferimento — ordena Strória para o médico, após entrar correndo no quarto.
— Não.
— Faça o que ele está dizendo — pede Morgan.
— Quem é ele? — pergunta Dorothy, apontando para o mago.
— Agora não, meu amor.
O médico atende ao pedido e desamarra lentamente as ataduras. Os panos ensanguentados grudam uns aos outros. Mesmo que desconheça Strória, o médico percebe que o rei confia muito nele.
O mago pede licença e acomoda-se ao lado da princesa. Em sua mão direita há um pequeno frasco dado a ele por Latifa. Strória abre a tampa e derrama metade do líquido de cor púrpura no ferimento frontal de Mia. Pede para que o médico e Alexus virem-na e derrama o resto da poção no segundo machucado externo provocado pela flecha.
— Ponha novas ataduras — exclama o mago, após um longo suspiro de cansaço.
— Como você se chama? — indaga Dorothy.
— Strória.
— Ele trabalha para mim — conta o rei, sem tirar os olhos de sua filha.
— Você é realmente cheio de segredos — fala a rainha, deixando transparecer o seu rancor.
— Como Norman fez isso? — pergunta Strória.
— Ele nos seguiu para vingar a morte do irmão. Fomos visitar uma das cachoeiras do Norte quando ele apareceu do meio da mata.
O mago gostaria de saber mais sobre o assunto. Entretanto, está ali por causa de outro fato igualmente preocupante. Sem muito tempo a perder, pede para falar em particular com o rei. Morgan até pensa em negar, mas sabe que o tema deve ser de extrema urgência, caso contrário Strória não solicitaria uma conversa neste momento.
— Me acompanhe, por favor.
Strória e Morgan deixam o quarto e vão até o escritório. Ao chegarem, o rei desaba sobre a cadeira como se carregasse o triplo do seu peso.
— O que aconteceu?
— Imagino que você esteja no seu limite, mas trago uma notícia realmente ruim. Durante minha ronda em Porto, soube da chegada de um elfo em estado crítico na costa. Ele estava quase morto por ter sido perseguido por elfos supremos, fugiu de barco e, como se não fosse ruim o bastante, a embarcação foi atacada antes de chegar ao continente.
— Só me deixe entender uma coisa. Você disse elfos supremos?
— Isso.
— Não existem elfos supremos.
— Não existiam — retruca o mago, alarmado com a própria notícia.
— Como assim?
— Eles são elfos mais fortes que perseguem os outros, que chamam de não tocados. Parece que quem está por trás disso é um elfo chamado Raziel. Nós precisamos agir com urgência e tomar parte desta batalha.
— Batalha?
— Os supremos estão perseguindo os demais elfos. Após concluírem esse primeiro estágio, dá para deduzir qual é o próximo passo.
— O mundo está desabando sobre a minha cabeça — queixa-se Morgan.
O mago observa o homem que alguns anos atrás ajudou-o no que foi possível. Todavia, desta vez, é o rei que precisa de suporte.
— Você sabe quantos elfos já foram tocados?
— Fala-se em um terço da população, ou seja, cerca de mil elfos. Mas é uma suposição vaga de alguém que chegou a Anger completamente desorientado.
— Qual a posição do Conselho Nobre? — indaga o rei, referindo-se aos elfos escolhidos para comandar o reino deles.
— Eles estão escondidos com outros elfos não tocados em algum local no sul da ilha Maskar Kaya. Parece que estão unificando um exército. O problema é que eles são mais fracos que os supremos.
— Eles pediram ajuda a quem?
— O elfo disse que vários foram enviados em semelhante missão para os reinos mais próximos. Alguns para o reino de Piclos, dos anões, e outros para Árgoda, dos magos.
— Você tem alguma informação se os outros já chegaram a seus respectivos destinos?
— Não. O elfo que chegou aqui só disse que sua comitiva foi atacada e não sabe nada sobre as outras.
— Atacada pelos supremos?
— Ele não sabe.
— Como pode não saber?
Strória dá de ombros.
— Conte o que está acontecendo para Alexus e traga-o aqui, por favor — pede o rei.
O mago corre até o quarto de Maclau para buscá-lo. Enquanto isso, Morgan tenta se concentrar. A palavra indigno ecoa em sua cabeça, deixando-o irritado. Mandou matar o filho e agora a filha está muito mal. Dorothy, sua companheira, talvez nunca mais queira dormir novamente ao seu lado. Como se não fosse ruim o suficiente, terá que enviar humanos para uma guerra.
— Com licença — fala Alexus.
— Você comandará nosso exército até Maskar Kaya — avisa o rei, com a voz trêmula.
— Tem certeza disso, majestade?
— Sim. Você é o homem em que mais confio, meu melhor guerreiro.
— E Mia?
— Ela ficará bem. Deve reestabelecer sua saúde dentro de poucos dias — esclarece Strória.
— Não sei o que fazer — desabafa Alexus.
— Alexus — fala Morgan —, por favor! Sei que cometi erros absurdos e vou pagar por eles. Não me abandone agora. Resolveremos tudo quando você voltar.
Strória não entende o que está acontecendo. Maclau reflete durante mais alguns segundos e fala.
— Está certo. O que fazer agora?
— Strória, vá a todas as cidades do reino e peça para os chefes das guardas entrarem em contato com prefeitos e governadores e reunirem o máximo possível de mulheres e homens dispostos a lutar. Eles devem se deslocar para as cidades portuárias e, depois disso, concentrarem-se em Porto — ordena o rei.
— Haverá barcos suficientes? — indaga Strória.
— Estou mais preocupado com o número de humanos dispostos a lutar.
— E eu? — pergunta Alexus.
— Reúna os voluntários de Maskáfer e vá a Mesmer arrumar mais alguns guerreiros. Combine de esperar a tropa de Reilos lá. Strória, dê ênfase para que Ronald não a leve para Norten. Depois, Alexus, conduza todos a Porto.
— Estou indo — diz Strória, que se vira para Alexus. — Vejo você em Porto?
— Certamente — responde o guerreiro.
— Vamos derrotá-los — exclama o rei. — Vamos mostrar nosso poder para eles.
Por mais que esteja magoado com o rei e nervoso pelo estado de Mia, Alexus sabe que seu papel, agora, é evitar uma catástrofe maior. Dará tudo de si para derrotar a ameaça supremacista. Uma guerra o aguarda.